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Ioannes Paulus PP. II Evangelium vitae IntraText CT - Texto |
« Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho » (Rm 8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do homem
Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34, 15; Sal 103 102, 14; 104 103, 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27; Sal 8, 6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: « A glória de Deus é o homem vivo ». Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus.
Afirma-o o Livro do Génesis, na primeira narração das origens, ao colocar o homem no vértice da actividade criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica submetido: « Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: « O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o guardar » (Gn 2, 15). Confirma-se assim o primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa.
Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e específica com o Criador: « Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança » (Gn 1, 26). A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura.
Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, « revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem » (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: « Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o bem e o mal » (Sir 17, 7). A capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é « capaz de conhecer e amar o seu Criador ». A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida; é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites do tempo: « Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza » (Sab 2, 23).
A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: « Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ».
Como é eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa.
« Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? » — interroga-se o Salmista (Sal 8, 5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: « Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes » (Sal 8, 6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: « Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de facto, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?" (Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso ».
Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: « Ele é a imagem do Deus invisível » (Col 1, 15), « o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância » (Heb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai.
O projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante » (1 Cor 15, 45).
A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se « conformes à imagem do seu Filho » (Rm 8, 29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua identidade.