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Ioannes Paulus PP. II Evangelium vitae IntraText CT - Texto |
« Ao homem, pedirei contas da vida do homem » (Gn 9, 5): a vida humana é sagrada e inviolável
De facto, a Sagrada Escritura apresenta ao homem o preceito « não matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino. Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da Aliança, que o Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava já contido na aliança primordial de Deus com a humanidade, após o castigo purificador do dilúvio, que fora provocado pelo incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5-6).
Deus proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-28). A vida humana possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se fará juiz severo de qualquer violação do mandamento « não matarás », colocado na base de toda a convivência social. Deus é o go'el, ou seja, o defensor do inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14; Jr 50, 34; Sal 19 18, 15). Deus comprova, assim também, que não Se alegra com a perdição dos vivos (cf. Sab 1, 13). Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no mundo (cf. Sab 2, 24). « Assassino desde o princípio », o diabo é também « mentiroso e pai da mentira » (Jo 8, 44): enganando o homem, levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objectivos e frutos de vida.
Desde os seus primórdios, a Tradição viva da Igreja — como testemunha a Didaké, o escrito cristão extra-bíblico mais antigo — reafirmou de modo categórico o mandamento « não matarás »: « Há dois caminhos, um da vida e o outro da morte; mas entre os dois existe uma grande diferença. (...) Segundo o preceito da doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (...) Este é o caminho da morte: (...) não têm compaixão do pobre, não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu Criador; assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são defensores dos ricos e juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais, filhos, permanecer sempre longe de todas estas culpas! ».
Ao longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e unanimamente o valor absoluto e permanente do mandamento « não matarás ». É sabido que, nos primeiros séculos, o homicídio se contava entre os três pecados mais graves — juntamente com a apostasia e o adultério —, e exigia-se uma penitência pública particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao homicida arrependido o perdão e a readmissão na comunidade eclesial.
Por outro lado, « a legítima defesa pode ser, não somente um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outrem, do bem comum da família ou da sociedade ». Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser atribuído ao próprio agressor que a tal se expôs com a sua acção, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente responsável por falta do uso da razão.
Claro está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a qualidade da pena hão-de ser atentamente ponderadas e decididas, não se devendo chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade não fosse possível de outro modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes.
Em todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo Catecismo da Igreja Católica: « na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana ».
De facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma verdade moral explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente mantida na Tradição da Igreja e unanimamente proposta pelo seu Magistério. Tal unanimidade é fruto evidente daquele « sentido sobrenatural da fé » que, suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o Povo de Deus, quando « manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes ».
Face ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na sociedade, da percepção da absoluta e grave ilicitude moral da eliminação directa de qualquer vida humana inocente, sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja intensificou as suas intervenções em defesa da sacralidade e inviolabilidade da vida humana. Ao Magistério pontifício, particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos individualmente. Não faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a intervenção do Concílio Vaticano II.
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica,confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não-escrita que todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magisterio ordinário e universal.
A decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes fundamentais da justiça e da caridade. « Nada e ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para outrem confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir ».
No referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a base de todo o relacionamento social autêntico, o qual, para o ser verdadeiramente, não pode deixar de se fundar sobre a verdade e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e cada mulher como pessoa, e não como coisa de que se possa dispor. Diante da norma moral que proíbe a eliminação directa de um ser humano inocente, « não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável" sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais ».