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Ioannes Paulus PP. II Evangelium vitae IntraText CT - Texto |
« Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião » (Sal 139 138, 16): o crime abominável do aborto
Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: « Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas » (Is 5, 20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como « interrupção da gravidez », que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.
A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua eliminação, ou até a provoca.
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.
Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado — e não o fizeram — válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades económicas e educativas. Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo instituições internacionais, fundações e associações, que se batem sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta às Famílias, « encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização ». Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma « estrutura de pecado » contra a vida humana ainda não nascida.
Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano. Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou — e ensina — que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: « O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida ».
A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua existência, inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio materno, o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja vocação está já escrita no « livro da vida » (cf. Sal 139 138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno — como testemunham numerosos textos bíblicos — já o homem é objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de Deus.
A Tradição cristã — como justamente se realça na Declaração sobre esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé — é clara e unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto como desordem moral particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké. Entre os escritores eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos, porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, « são já objecto dos cuidados da Providência divina ». Entre os latinos, Tertuliano afirma: « É um homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um homem aquele que o será ».
Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.
A disciplina canónica da Igreja, desde os primeiros séculos, puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O Código de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão. Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que « quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae », isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado: com uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto, a finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.
Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança e é imutável. Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.
Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada pela Igreja.
A mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta os embriões e os fetos humanos ainda vivos — às vezes « produzidos » propositadamente para este fim através da fecundação in vitro — seja como « material biológico » à disposição, seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas doenças. Na realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes, ainda que com vantagem para outras, constitui um acto absolutamente inaceitável.
Especial atenção há-de ser reservada à avaliação moral das técnicas de diagnose pré-natal, que permitem individuar precocemente eventuais anomalias do nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas técnicas, a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa e articuladamente. Quando estão isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a mãe, e se destinam a tornar possível uma terapia precoce ou ainda a favorecer uma serena e consciente aceitação do nascituro, estas técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado que as possibilidade de cura antes do nascimento são hoje ainda reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas são postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita o aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças afectadas por tipos vários de anomalias. Semelhante mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável, porque pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo parâmetros de « normalidade » e de bem-estar físico, abrindo assim a estrada à legitimação do infanticídio e da eutanásia.
Na realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que muitos irmãos nossos, afectados por graves deficiências, conduzem a sua existência quando são aceites e amados por nós, constituem um testemunho particularmente eficaz dos valores autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo em condições difíceis, preciosa para o próprio e para os outros. A Igreja sente-se solidária com os cônjuges que, com grande ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus filhos gravemente deficientes, tal como se sente grata a todas as famílias que, pela adopção, acolhem os que são abandonados pelos seus pais por causa de limitações ou doenças.