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Ioannes Paulus PP. II
Fides et ratio

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2. A razão perante o mistério

 

13. Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de Deus; 13 e contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre pelo carácter parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a permite entrar dentro do mistério, proporcionando uma sua compreensão coerente.

O Concílio ensina que, « a Deus que revela, é devida a obediência da ». 14 Com esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a é uma resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela , o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade pessoal. 15 Na , portanto, não basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em acção. Mais, é a que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade e decide viver nela.

Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto.

Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério. Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás, « nada vês nem compreendes, mas t'o afirma a mais viva, para além das leis da Terra. Sob espécies diferentes, que não passam de sinais, é que está o dom de Deus ». 16 Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do filósofo Pascal: « Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece, entre as opiniões comuns, sem diferença exterior. O mesmo se com a Eucaristia relativamente ao pão comum ».17

Em resumo, o conhecimento da não anula o mistério; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, « na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime », 18 que é participar no mistério da vida trinitária de Deus. 19

 

14. A doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente novo também ao saber filosófico. A Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na . Entre estes dois momentos, a razão possui o seu espaço peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada mais que a sua finitude ante o mistério infinito de Deus.

A Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-nos, nesta reflexão, uma das inteligências mais fecundas e significativas da história da humanidade, à qual obrigatoriamente fazem referência a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra, Proslogion, o Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: « Detendo-me com frequência e atenção a pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes, pelo contrário, furtava-se completamente ao meu pensamento; até que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era impossível encontrar. Mas, quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua ocupação da minha mente não me alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que é que comecei a fazer e o que é que consegui? O que é que visava e a que ponto cheguei? A que é que aspirava e por que é que suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo acerca do qual não se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se não fôsseis o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é impossível ». 20

 

15. A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quemquer que seja perceber o « mistério » da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: « Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á » (Jo 8, 32).

A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de conhecer a verdade — se ainda é capaz de ver para além de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectosé-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do Deuteronómio: « A lei que hoje te imponho não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?" Não está tão pouco do outro lado do mar, para que digas: "Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?" Não, ela está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la » (30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: « Noli foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas ». 21

À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele « caminho da vida » (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a , tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.

 




13 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 4.



14 Ibid., 5.



15 O Concílio Vaticano I, ao qual se refere a sentença anteriormente citada, ensina que a obediência da exige o empenhamento da inteligência e da vontade: « Dado que o homem depende totalmente de Deus, enquanto seu Criador e Senhor, e a razão criada está submetida completamente à verdade incriada, somos obrigados, quando Deus Se revela, a prestar-Lhe, mediante a , a plena submissão da nossa inteligência e da nossa vontade » [Const. dogm. sobre a católica Dei Filius, III: DS 3008].



16 Sequência, na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.



17 Pensées (ed. L. Brunschvicg), 789.



18 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.



19 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 2.



20 Proémio e nn. 1 e 15: PL 158, 223-224.226.235.



21 De vera religione, XXXIX, 72: CCL 32, 234.






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