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Ioannes Paulus PP. II Fides et ratio IntraText CT - Texto |
2. Diferentes estádios da filosofia
75. Como consta da história das relações entre a fé e a filosofia, apontada acima brevemente, podem distinguir-se diversos estádios da filosofia relativamente à fé cristã. O primeiro é a filosofia totalmente independente da revelação evangélica: é o estádio da filosofia, existente historicamente nas épocas que precederam o nascimento do Redentor, e, mesmo depois dele, nas regiões onde o Evangelho ainda não chegou. Nesta situação, a filosofia apresenta a legítima aspiração de ser um empreendimento autónomo, ou seja, que procede segundo as suas próprias leis, valendo-se simplesmente das forças da razão. Embora cientes dos graves limites devidos à debilidade congénita da razão humana, uma tal aspiração deve ser apoiada e fortalecida. De facto, o trabalho filosófico, como busca da verdade no âmbito natural, pelo menos implicitamente permanece aberto ao sobrenatural.
E, mesmo quando é o próprio discurso teológico que se serve de conceitos e argumentações filosóficas, a exigência de correcta autonomia do pensamento há-de ser respeitada. Com efeito, a argumentação conduzida segundo rigorosos critérios racionais é garantia para a obtenção de resultados universalmente válidos. Também aqui se verifica o princípio segundo o qual a graça não destrói, mas aperfeiçoa a natureza: a anuência de fé, que envolve a inteligência e a vontade, não destrói mas aperfeiçoa o livre arbítrio do crente, que acolhe em si próprio o dado revelado.
Desta exigência em si mesma correcta, afasta-se nitidamente a teoria da chamada filosofia « separada », sustentada por vários filósofos modernos. Mais do que afirmação da justa autonomia do filosofar, ela constitui a reivindicação duma auto-suficiência do pensamento que é claramente ilegítima: rejeitar as contribuições de verdade vindas da revelação divina significa efectivamente impedir o acesso a um conhecimento mais profundo da verdade, danificando precisamente a filosofia.
76. Um segundo estádio da filosofia é aquilo que muitos designam com a expressão filosofia cristã. A denominação, em si mesma, é legítima, mas não deve dar margem a equívocos: com ela, não se pretende aludir a uma filosofia oficial da Igreja, já que a fé enquanto tal não é uma filosofia. Com aquela designação, deseja-se sobretudo indicar um modo cristão de filosofar, uma reflexão filosófica concebida em união vital com a fé. Por conseguinte, não se refere simplesmente a uma filosofia elaborada por filósofos cristãos que, na sua pesquisa, quiseram não contradizer a fé. Quando se fala de filosofia cristã, pretende-se abraçar todos aqueles importantes avanços do pensamento filosófico que não seriam alcançados sem a contribuição, directa ou indirecta, da fé cristã.
Assim, a filosofia cristã contém dois aspectos: um subjectivo, que consiste na purificação da razão por parte da fé. Esta, enquanto virtude teologal, liberta a razão da presunção — uma típica tentação a que os filósofos facilmente estão sujeitos. Já S. Paulo e os Padres da Igreja, e mais recentemente filósofos, como Pascal e Kierkegaard, a estigmatizaram. Com a humildade, o filósofo adquire também a coragem para enfrentar algumas questões que dificilmente poderia resolver sem ter em consideração os dados recebidos da Revelação. Basta pensar, por exemplo, aos problemas do mal e do sofrimento, à identidade pessoal de Deus e à questão acerca do sentido da vida, ou, mais diretamente, à pergunta metafísica radical: « Porque existe o ser? ».
Temos, depois, o aspecto objectivo, que diz respeito aos conteúdos: a Revelação propõe claramente algumas verdades que, embora sejam acessíveis à razão por via natural, possivelmente nunca seriam descobertas por ela, se tivesse sido abandonada a si própria. Colocam-se, neste horizonte, questões como o conceito de um Deus pessoal, livre e criador, que tanta importância teve para o progresso do pensamento filosófico e, de modo particular, para a filosofia do ser. Pertence ao mesmo âmbito a realidade do pecado, tal como é vista pela luz da fé, e que ajuda a filosofia a enquadrar adequadamente o problema do mal. Também a concepção da pessoa como ser espiritual é uma originalidade peculiar da fé: o anúncio cristão da dignidade, igualdade e liberdade dos homens influiu seguramente sobre a reflexão filosófica, realizada pelos filósofos modernos. Nos tempos mais recentes, pode-se mencionar a descoberta da importância que tem, também para a filosofia, o acontecimento histórico, centro da revelação cristã. Não foi por acaso que aquele se tornou perne de uma filosofia da história, que se apresenta como um novo capítulo da busca humana da verdade.
Entre os elementos objectivos da filosofia cristã, inclui-se também a necessidade de explorar a racionalidade de algumas verdades expressas pela Sagrada Escritura, tais como a possibilidade de uma vocação sobrenatural do homem, e também o próprio pecado original. São tarefas que induzem a razão a reconhecer que existe a verdade e o racional, muito para além dos limites estreitos onde ela seria tentada a encerrar-se. Estas temáticas ampliam, de facto, o âmbito do racional.
Ao reflectirem sobre estes conteúdos, os filósofos não se tornaram teólogos, já que não procuraram compreender e ilustrar as verdades da fé a partir da Revelação; continuaram a trabalhar no seu próprio terreno e com a sua metodologia puramente racional, mas alargando a sua investigação a novos âmbitos da verdade. Pode-se dizer que, sem este influxo estimulante da palavra de Deus, boa parte da filosofia moderna e contemporânea não existiria. O dado mantém toda a sua relevância, mesmo diante da constatação decepcionante de não poucos pensadores destes últimos séculos que abandonaram a ortodoxia cristã.
77. Outro estádio significativo da filosofia verifica-se quando é a própria teologia que chama em causa a filosofia. Na verdade, a teologia sempre teve, e continua a ter, necessidade da contribuição filosófica. Realizado pela razão crítica à luz da fé, o trabalho teológico pressupõe e exige, ao longo de toda a sua pesquisa, uma razão conceptual e argumentativamente educada e formada. Além disso, a teologia precisa da filosofia como interlocutora, para verificar a inteligibilidade e a verdade universal das suas afirmações. Não foi por acaso que os Padres da Igreja e os teólogos medievais assumiram, para tal função explicativa, filosofias não cristãs. Este facto histórico indica o valor da autonomia que a filosofia conserva mesmo neste terceiro estádio, mas mostra igualmente as transformações necessárias e profundas que ela deve sofrer.
É precisamente no sentido de uma contribuição indispensável e nobre que a filosofia foi chamada, desde a Idade Patrística, ancilla theologiæ. De facto, o título não foi atribuído para indicar uma submissão servil ou um papel puramente funcional da filosofia relativamente à teologia; mas no mesmo sentido em que Aristóteles falava das ciências experimentais como « servas » da « filosofia primeira ». A expressão, hoje dificilmente utilizável devido aos princípios de autonomia antes mencionados, foi usada ao longo da história para indicar a necessidade da relação entre as duas ciências e a impossibilidade de uma sua separação.
Se o teólogo se recusasse a utilizar a filosofia, arriscar-se-ia a fazer filosofia sem o saber e a fechar-se em estruturas de pensamento pouco idóneas à compreensão da fé. Se o filósofo, por sua vez, excluísse todo o contacto com a teologia, ver-se-ia na obrigação de apoderar-se por conta própria dos conteúdos da fé cristã, como aconteceu com alguns filósofos modernos. Tanto num caso como noutro, surgiria o perigo da destruição dos princípios básicos de autonomia que cada ciência justamente quer ver garantidos.
O estádio da filosofia agora considerado, devido às implicações que comporta na compreensão da Revelação, está, como acontece com a teologia, mais directamente colocado sob a autoridade do Magistério e do seu discernimento, como expus mais acima. Das verdades de fé derivam, efectivamente, determinadas exigências que a filosofia deve respeitar, quando entra em relação com a teologia.
78. À luz destas reflexões, é fácil compreender porque tenha o Magistério louvado reiteradamente os méritos do pensamento de S. Tomás, e o tenha proposto como guia e modelo dos estudos teológicos. O que interessava não era tomar posição sobre questões propriamente filosóficas, nem impor a adesão a teses particulares; o objectivo do Magistério era, e continua a ser, mostrar como S. Tomás é um autêntico modelo para quantos buscam a verdade. De facto, na sua reflexão, a exigência da razão e a força da fé encontraram a síntese mais elevada que o pensamento jamais alcançou, enquanto soube defender a novidade radical trazida pela Revelação, sem nunca humilhar o caminho próprio da razão.
79. Ao explicitar melhor os conteúdos do Magistério precedente, é minha intenção, nesta última parte, indicar algumas exigências que a teologia — e, ainda antes, a palavra de Deus — coloca, hoje, ao pensamento filosófico e às filosofias actuais. Como já assinalei, o filósofo deve proceder segundo as próprias regras e basear-se sobre os próprios princípios; todavia, a verdade é uma só. A Revelação, com os seus conteúdos, não poderá nunca humilhar a razão nas suas descobertas e na sua legítima autonomia; a razão, por sua vez, não deverá perder nunca a sua capacidade de interrogar-se e de interrogar, consciente de não poder arvorar-se em valor absoluto e exclusivo. A verdade revelada, projectando plena luz sobre o ser a partir do esplendor que lhe vem do próprio Ser subsistente, iluminará o caminho da reflexão filosófica. Em resumo, a revelação cristã torna-se o verdadeiro ponto de enlace e confronto entre o pensar filosófico e o teológico, no seu recíproco intercâmbio. Espera-se, pois, que teólogos e filósofos se deixem guiar unicamente pela autoridade da verdade, para que seja elaborada uma filosofia de harmonia com a palavra de Deus. Esta filosofia será o terreno de encontro entre as culturas e a fé cristã, o espaço de entendimento entre crentes e não crentes. Ajudará os crentes a convencerem-se mais intimamente de que a profundidade e a autenticidade da fé saem favorecidas quando esta se une ao pensamento e não renuncia a ele. Mais uma vez, encontramos nos Padres a lição que nos guia nesta convicção: « Crer, nada mais é senão pensar consentindo [...]. Todo o que crê, pensa; crendo pensa, e pensando crê [...]. A fé, se não for pensada, nada é ». 95 Mais: « Se se tira o assentimento, tira-se a fé, pois, sem o assentimento, realmente não se crê ». 96