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Ioannes Paulus PP. II Fides et ratio IntraText CT - Texto |
2. Os diferentes rostos da verdade do homem
O mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito das questões últimas. A sede de verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos convencidos, até porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, o conjunto dos resultados alcançados confirma a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de chegar à verdade.
30. Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas. 27
Quanto às verdades filosóficas, é necessário especificar que não se limitam só às doutrinas, por vezes efémeras, dos filósofos profissionais. Como já disse, todo o homem é, de certa forma, um filósofo e possui as suas próprias concepções filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência: e, à luz disso, interpreta a própria vida pessoal e regula o seu comportamento. É aqui que deveria colocar-se a questão da relação entre as verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo. Antes de responder a tal questão, é preciso ter em conta outro dado da filosofia.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem ao pensamento é o testemunho dos mártires. Com efeito, o mártir é a testemunha mais genuína da verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera consenso, é escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança na sua palavra: descobre-se neles a evidência dum amor que não precisa de longas demonstrações para ser convincente, porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos ter a força de dizer.
33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. 28 Graças às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
É bom não esquecer que também a razão, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto, superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.
34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está em contraste com as verdades que se alcançam filosofando. Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade na sua plenitude. A unidade da verdade já é um postulado fundamental da razão humana, expresso no princípio de não-contradição. A Revelação dá a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador é também o Deus da história da salvação. Deus que fundamenta e garante o carácter inteligível e racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, 29 é o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra a sua identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o apóstolo Paulo: « A verdade que existe em Jesus » (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele é a Palavra eterna, na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo é a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa,30 revela o Pai (cf. Jo 1, 14.18). Aquilo que a razão humana procura « sem o conhecer » (cf. Act 17, 23), só pode ser encontrado por meio de Cristo: de facto, o que n'Ele se revela é a « verdade plena » (cf. Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realização (cf. Col 1, 17).
oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus" (Gaudium et spes, 36). Galileu manifesta, na sua investigação científica, a presença do Criador que o estimula, que Se antecipa às suas intuições e as ajuda, operando no mais profundo do seu espírito » [João Paulo II, Discurso à Pontifícia Academia das Ciências, a 10 de Novembro de 1979: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa, de 25 de Novembro de 1979), 6].