- CAPÍTULO IV - A RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO
- 3. O drama da separação da fé e da razão
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3. O
drama da separação da fé e da razão
45.
Quando surgiram as primeiras universidades, a teologia começou a relacionar-se
mais directamente com outras formas da pesquisa e do saber científico. Santo
Alberto Magno e S. Tomás, embora admitindo uma ligação orgânica entre a
filosofia e a teologia, foram os primeiros a reconhecer à filosofia e às
ciências a autonomia de que precisavam para se debruçar eficazmente sobre os
respectivos campos de investigação. Todavia, a partir da baixa Idade Média,
essa distinção legítima entre os dois conhecimentos transformou-se
progressivamente em nefasta separação. Devido ao espírito excessivamente
racionalista de alguns pensadores, radicalizaram-se as posições, chegando-se,
de facto, a uma filosofia separada e absolutamente autónoma dos conteúdos da
fé. Entre as várias consequências de tal separação, sobressai a difidência cada
vez mais forte contra a própria razão. Alguns começaram a professar uma
desconfiança geral, céptica ou agnóstica, quer para reservar mais espaço à fé,
quer para desacreditar qualquer possível referência racional à mesma.
Em resumo,
tudo o que o pensamento patrístico e medieval tinha concebido e actuado como
uma unidade profunda, geradora dum conhecimento capaz de chegar às formas mais
altas da especulação, foi realmente destruído pelos sistemas que abraçaram a
causa de um conhecimento racional, separado e alternativo da fé.
46.
As radicalizações mais influentes são bem conhecidas e visíveis, sobretudo na
história do Ocidente. Não é exagerado afirmar que boa parte do pensamento
filosófico moderno se desenvolveu num progressivo afastamento da revelação
cristã até chegar explicitamente à contraposição. No século passado, este
movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo procuraram, de
diversos modos, transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da
morte e ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas dialécticas racionalmente
compreensíveis. Mas a esta concepção, opuseram-se diversas formas de humanismo
ateu, elaboradas filosoficamente, que apontaram a fé como prejudicial e
alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Não tiveram medo de se
apresentar como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no
plano político e social, em sistemas totalitários traumáticos para a
humanidade.
No âmbito
da investigação científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não
apenas se afastou de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou
cair qualquer alusão à visão metafísica e moral. Por causa disso, certos
cientistas, privados de qualquer referimento ético, correm o risco de não
manterem, ao centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida.
Mais, alguns deles, cientes das potencialidades contidas no progresso
tecnológico, parecem ceder à lógica do mercado e ainda à tentação dum poder
demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser humano.
Como
consequência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo. Enquanto filosofia
do nada, consegue exercer um certo fascínio sobre os nossos contemporâneos. Os
seus seguidores defendem a pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem
possibilidade alguma de alcançar a meta da verdade. Na interpretação niilista,
a existência é somente uma oportunidade para sensações e experiências onde o
efémero detém o primado. O niilismo está na origem duma mentalidade difusa,
segundo a qual não se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo
é fugaz e provisório.
47.
Por outro lado, é preciso não esquecer que, na cultura moderna, foi alterada a
própria função da filosofia. De sabedoria e saber universal que era, foi-se
progressivamente reduzindo a uma das muitas áreas do saber humano; mais, sob
alguns dos seus aspectos, ficou reduzida a um papel completamente marginal.
Entretanto, foram-se consolidando sempre mais outras formas de racionalidade,
pondo assim em evidência o carácter marginal do saber filosófico. Em vez de
apontarem para a contemplação da verdade e a busca do fim último e do sentido
da vida, essas formas de racionalidade são orientadas, ou pelo menos
orientáveis, como « razão instrumental » ao serviço de fins utilitaristas, de
prazer ou de poder.
Quanto seja
perigoso absolutizar esta estrada, fi-lo notar já na minha primeira carta
encíclica, ao escrever: « O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por
aquilo mesmo que produz, ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e,
ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da
sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com grande rapidez
e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser não tanto objecto de
"alienação", no sentido de que são simplesmente tirados àqueles que
os produzem, como sobretudo, pelo menos parcialmente, num círculo consequente e
indirecto dos seus efeitos, tais frutos voltam-se contra o próprio homem. Eles
são de facto dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem. Nisto parece consistir
o acto principal do drama da existência humana contemporânea, na sua dimensão
mais ampla e universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no medo.
Teme que os seus produtos, naturalmente não todos nem a maior parte, mas alguns
e precisamente aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da
sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo ».
53
Na
sequência destas transformações culturais, alguns filósofos, abandonando a
busca da verdade por si mesma, assumiram como único objectivo a obtenção da
certeza subjectiva ou da utilidade prática. Em consequência, deu-se o
obscurecimento da verdadeira dignidade da razão, impossibilitada de conhecer a
verdade e de procurar o absoluto.
48.
Assim, o dado saliente desta última parte da história da filosofia é a
constatação duma progressiva separação entre a fé e a razão filosófica. É
verdade que, observando bem, mesmo na reflexão filosófica daqueles que
contribuíram para ampliar a distância entre fé e razão, se manifestam às vezes
gérmenes preciosos de pensamento que, se aprofundados e desenvolvidos com mente
e coração recto, podem fazer descobrir o caminho da verdade. Estes gérmenes de
pensamento podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas análises sobre a
percepção e a experiência, a imaginação e o inconsciente, sobre a personalidade
e a intersubjectividade, a liberdade e os valores, o tempo e a história.
Inclusive o tema da morte pode tornar-se, para todo o pensador, um severo apelo
a procurar dentro de si mesmo o sentido autêntico da própria existência.
Todavia isto não pode fazer esquecer a necessidade que a actual relação entre
fé e razão tem de um cuidadoso esforço de discernimento, porque tanto a razão
como a fé ficaram reciprocamente mais pobres e débeis. A razão, privada do
contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de
vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o
sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta
universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze
de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um
mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma
fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do
ser.
À luz
disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo para que a fé e a
filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem
coerentes com a sua natureza, no respeito da recíproca autonomia. Ao
desassombro (parresia) da fé deve
corresponder a audácia da razão.
53
Carta enc. Redemptor hominis (4 de
Março de 1979), 15: AAS 71 (1979),
286.
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