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Ioannes Paulus PP. II Fides et ratio IntraText CT - Texto |
CAPÍTULO VI - INTERACÇÃO DA TEOLOGIA COM A FILOSOFIA
1. A ciência da fé e as exigências da razão filosófica
65. A teologia está organizada, enquanto ciência da fé, à luz dum duplo princípio metodológico: auditus fidei e intellectus fidei. Com o primeiro, recolhe os conteúdos da Revelação tal como se foram explicitando progressivamente na Sagrada Tradição, na Sagrada Escritura e no Magistério vivo da Igreja. 88 Pelo segundo, a teologia quer responder às exigências próprias do pensamento, através da reflexão especulativa.
Quanto à preparação para um correcto auditus fidei, a filosofia proporciona à teologia a sua ajuda peculiar, quando examina a estrutura do conhecimento e da comunicação pessoal, e sobretudo as várias formas e funções da linguagem. Igualmente importante é a contribuição da filosofia para uma compreensão mais coerente da Tradição eclesial, das intervenções do Magistério e das sentenças dos grandes mestres da teologia: estes, de facto, exprimem-se frequentemente por conceitos e formas de pensamento conotados com determinada tradição filosófica. Neste caso, pede-se ao teólogo não só que exponha conceitos e termos através dos quais a Igreja possa reflectir e elaborar a sua doutrina, mas que conheça profundamente também os sistemas filosóficos que tenham, porventura, influenciado as noções e a terminologia, a fim de se chegar a interpretações correctas e coerentes.
66. Relativamente ao intellectus fidei, importa considerar, antes de mais, que a Verdade divina, « que nos é proposta nas Sagradas Escrituras, interpretadas correctamente pela doutrina da Igreja », 89 goza de uma inteligibilidade própria, logicamente tão coerente que se deve propor como um autêntico saber. O intellectus fidei explicita esta verdade, não só quando investiga as estruturas lógicas e conceptuais das proposições em que se articula a doutrina da Igreja, mas também e sobretudo quando põe em realce o significado salvífico de tais proposições para o indivíduo e para a humanidade. É pelo conjunto destas proposições que o crente chega a conhecer a história da salvação, que culmina na pessoa de Jesus Cristo e no seu mistério pascal; ele participa deste mistério, com a sua adesão de fé.
A teologia dogmática deve ser capaz de articular o sentido universal do mistério de Deus, Uno e Trino, e da economia da salvação, quer de modo narrativo, quer sobretudo de forma argumentativa. Por outras palavras, deve fazê-lo mediante expressões conceptuais, formuladas de modo crítico e universalmente acessível. De facto, sem o contributo da filosofia não seria possível ilustrar certos conteúdos teológicos como, por exemplo, a linguagem sobre Deus, as relações pessoais no seio da Santíssima Trindade, a acção criadora de Deus no mundo, a relação entre Deus e o homem, a identidade de Cristo que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E o mesmo se diga de diversos temas da teologia moral, onde é preciso recorrer, de imediato, a conceitos como lei moral, consciência, liberdade, responsabilidade pessoal, culpa, etc., cuja definição provém da ética filosófica.
Por isso, é necessário que a razão do crente tenha um conhecimento natural, verdadeiro e coerente das coisas criadas, do mundo e do homem, que são também objecto da revelação divina; mais ainda, ela deve ser capaz de articular este conhecimento de maneira conceptual e argumentativa. Assim, a teologia dogmática especulativa pressupõe e implica uma filosofia do homem, do mundo e, mais radicalmente, do próprio ser, fundada sobre a verdade objectiva.
67. A teologia fundamental, pelo seu próprio carácter de disciplina que tem por função dar razão da fé (cf. 1 Ped 3, 15), deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica. Já o Concílio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rom 1, 19-20), chamara a atenção para o facto de existirem verdades que se podem conhecer de modo natural e, consequentemente, filosófico. O seu conhecimento constitui um pressuposto necessário para acolher a revelação de Deus. Quando a teologia fundamental estuda a Revelação e a sua credibilidade com o relativo acto de fé, deverá mostrar como emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas verdades que a razão, autonomamente, já encontra ao longo do seu caminho de pesquisa. A essas verdades, a Revelação confere-lhes plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mistério revelado, onde encontram o seu fim último. Basta pensar, por exemplo, ao conhecimento natural de Deus, à possibilidade de distinguir a revelação divina de outros fenómenos, ou ao conhecimento da sua credibilidade, à capacidade que tem a linguagem humana de falar, de modo significativo e verdadeiro, mesmo do que ultrapassa a experiência humana. Por todas estas verdades, a mente é levada a reconhecer a existência duma via realmente propedêutica à fé, que pode desembocar no acolhimento da Revelação, sem faltar minimamente aos seus próprios princípios e autonomia. 90
Da mesma forma, a teologia fundamental deverá manifestar a compatibilidade intrínseca entre a fé e a sua exigência essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar com plena liberdade o seu consentimento. Assim, a fé saberá « mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera da verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão, decerto não pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na fé, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar ». 91
Os aspectos sublinhados, já presentes aliás na doutrina conciliar, 92 contêm uma parte de verdade. O referimento às ciências, útil em muitos casos porque permite um conhecimento mais completo do objecto de estudo, não deve, porém, fazer esquecer a necessidade que há da mediação duma reflexão tipicamente filosófica, crítica e aberta ao universal, solicitada também por um fecundo intercâmbio entre as culturas. A minha preocupação é pôr em destaque o dever de não se ficar pelo caso isolado e concreto, descuidando assim a tarefa primária que é manifestar o carácter universal do conteúdo de fé. Além disso, não se deve esquecer que a peculiar contribuição do pensamento filosófico permite discernir, tanto nas diversas concepções da vida como nas culturas, « não o que os homens pensam, mas qual é a verdade objectiva ». 93 Não as diversas opiniões humanas, mas somente a verdade pode servir de ajuda à filosofia.
Iluminada por este texto, a nossa reflexão pode debruçar-se sobre a transformação que se operou nos gentios quando abraçaram a fé. As barreiras que separam as diversas culturas caem diante da riqueza da salvação, realizada por Cristo. Agora, em Cristo, a promessa de Deus torna-se uma oferta universal: não limitada já à dimensão particular de um povo, da sua língua ou dos seus costumes, mas alargada a todos, como um património ao qual cada um pode livremente ter acesso. Dos mais diversos lugares e tradições, todos são chamados, em Cristo, a participar na unidade da família dos filhos de Deus. Cristo faz com que dois povos se tornem « um só ». Os que « estavam longe » ficaram « próximo », graças à novidade gerada pelo mistério pascal. Jesus abate os muros de divisão e realiza a unificação, de um modo original e supremo, por meio da participação no seu mistério. Esta unidade é tão profunda que a Igreja pode dizer com S. Paulo: « Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus » (Ef 2, 19).
Nesta asserção tão simples, está contida uma grande verdade: o encontro da fé com as diversas culturas deu vida a uma nova realidade. Na verdade, quando as culturas estão profundamente radicadas na natureza humana, contêm em si mesmas o testemunho da abertura, própria do homem, ao universal e à transcendência. É por isso que elas apresentam perspectivas distintas da verdade, que são de evidente utilidade para o homem, porque lhe fazem vislumbrar valores capazes de tornar a sua existência sempre mais humana. 94 Por outro lado, na medida em que evocam os valores das tradições antigas, as culturas trazem consigo — embora de modo implícito, mas nem por isso menos real — a referência à manifestação de Deus na natureza, como se viu antes nos textos sapienciais e no ensinamento de S. Paulo.
Também o modo como os cristãos vivem a fé, está imbuído da cultura do ambiente circundante, e vai progressivamente contribuindo, por sua vez, para modelar as características do mesmo. Os cristãos transmitem, a cada cultura, a verdade imutável que Deus revelou na história e na cultura dum povo. Ao longo dos séculos, continua a reproduzir-se o mesmo fenómeno testemunhado pelos peregrinos presentes em Jerusalém, no dia de Pentecostes. Ao escutarem os Apóstolos, perguntavam-se: « Mas quê! Essa gente que está a falar não é da Galileia? Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia, vizinha de Cirene, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los anunciar nas nossas línguas as maravilhas de Deus! » (Act 2, 7-11). O anúncio do Evangelho nas diversas culturas, ao exigir de cada um dos destinatários a adesão da fé, não os impede de conservar a própria identidade cultural. Isto não provoca qualquer divisão, pois o povo dos baptizados distingue-se por uma universalidade que é capaz de acolher todas as culturas, fazendo com que aquilo que nelas está implícito se desenvolva até à sua explanação plena na verdade.
Em consequência disto, uma cultura nunca pode servir de critério de juízo e, menos ainda, de critério último de verdade a respeito da revelação de Deus. O Evangelho não é contrário a esta ou àquela cultura, como se quisesse, ao encontrar-se com ela, privá-la daquilo que lhe pertence, e a obrigasse a assumir formas extrínsecas que lhe são estranhas. Pelo contrário, o anúncio que o crente leva ao mundo e às culturas é uma forma real de libertação de toda a desordem introduzida pelo pecado e, simultaneamente, uma chamada à verdade plena. Neste encontro, as culturas não são privadas de nada, antes são estimuladas a abrirem-se à novidade da verdade evangélica, de que recebem impulso para novos progressos.
O meu pensamento vai espontaneamente até às terras do Oriente, tão ricas de tradições religiosas e filosóficas muito antigas. Entre elas, ocupa um lugar especial a Índia. Um grande ímpeto espiritual leva o pensamento indiano a procurar uma experiência que, libertando o espírito dos condicionamentos de tempo e espaço, tenha valor de absoluto. No dinamismo desta busca de libertação, situam-se grandes sistemas metafísicos.
Compete aos cristãos de hoje, sobretudo aos da Índia, a tarefa de extrair deste rico património os elementos compatíveis com a sua fé, para se obter um enriquecimento do pensamento cristão. Nesta obra de discernimento, que tem a sua fonte de inspiração na declaração conciliar Nostra aetate, deverão ter em consideração um certo número de critérios. O primeiro é a universalidade do espírito humano, cujas exigências fundamentais são idênticas nas mais distintas culturas. O segundo, derivado do anterior, consiste no seguinte: quando a Igreja entra em contacto com grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, não pode pôr de parte o que adquiriu pela inculturação no pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria contrariar o desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo e da história. Aliás, este critério é válido para a Igreja de todos os tempos — também para a Igreja de amanhã, que se sentirá enriquecida com as aquisições resultantes do encontro em nossos dias com as culturas orientais, e desta herança há-de tirar, por sua vez, indicações novas para entrar frutuosamente em diálogo com as culturas que a humanidade fizer florir no seu caminho rumo ao futuro. Em terceiro lugar, há-de precaver-se por não confundir a legítima reivindicação de especificidade e originalidade do pensamento indiano, com a ideia de que uma tradição cultural deve enclausurar-se na sua diferença e afirmar-se pela sua oposição às outras tradições — ideia essa que seria contrária precisamente à natureza do espírito humano.
O que fica dito para a Índia, vale também para a herança das grandes culturas da China, do Japão e demais países da Ásia, bem como das riquezas das culturas tradicionais da África, transmitidas sobretudo por via oral.