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Ioannes Paulus PP. II Veritatis splendor IntraText CT - Texto |
CAPÍTULO II - «NÃO VOS CONFORMEIS COM A MENTALIDADE DESTE MUNDO (RM 12, 2)
A Igreja e o discernimento de algumas tendências da teologia moral hodierna
Ensinar o que é conforme à sã doutrina (cf. Tit 2, 1)
Na sua reflexão moral, a Igreja teve constantemente presente as palavras, que Jesus dirigiu ao jovem rico. A Sagrada Escritura, de facto, permanece a fonte viva e fecunda da doutrina moral da Igreja, como recordou o Concílio Vaticano II: «O Evangelho é (...) fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes». Aquela conservou fielmente aquilo que a palavra de Deus ensina, tanto acerca das verdades a acreditar, como sobre o agir moral, isto é, o agir agradável a Deus (cf. 1 Ts 4, 1), realizando um progresso doutrinal análogo ao verificado no âmbito das verdades da fé. Assistida pelo Espírito Santo que a guia para a verdade total (cf. Jo 16, 13), a Igreja nunca cessou, nem poderá cessar, de perscrutar o «mistério do Verbo encarnado», no qual «se esclarece verdadeiramente o mistério do homem».
O Concílio Vaticano II convidou os estudiosos a porem «especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para a vida do mundo». O mesmo Concílio convidou os teólogos «a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra, o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado». Daí o posterior convite, lançado a todos os fiéis, mas dirigido particularmente aos teólogos: «vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo, e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura».
O esforço de muitos teólogos, incentivados pelo encorajamento do Concílio, já deu os seus frutos com interessantes e úteis reflexões sobre as verdades da fé a crer e a aplicar na vida, apresentadas de forma mais adequada à sensibilidade e às questões dos homens do nosso tempo. A Igreja e, em particular, os Bispos, a quem Jesus Cristo confiou primariamente o ministério de ensinar, acolham com gratidão um tal esforço e estimulem os teólogos a prosseguirem o trabalho, animados por um profundo e autêntico temor do Senhor, que é o princípio da sabedoria (cf. Prov 1, 7).
Ao mesmo tempo, porém, no âmbito das discussões teológicas pós-conciliares, foram-se desenvolvendo algumas interpretações da moral cristã que não são compatíveis com a «sã doutrina» (2 Tim 4, 3). Certamente o Magistério da Igreja não pretende impor aos fiéis nenhum sistema teológico particular nem mesmo filosófico, mas para «guardar religiosamente e expor fielmente» a Palavra de Deus, ele tem o dever de declarar a incompatibilidade com a verdade revelada de certas orientações do pensamento teológico ou de algumas afirmações filosóficas.
É sempre nessa mesma luz e força que o Magistério da Igreja realiza a sua obra de discernimento, acolhendo e pondo em prática a admoestação que o apóstolo Paulo dirigia a Timóteo: «Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo que há-de julgar os vivos e os mortos, e em nome da Sua aparição e do Seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina. Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina. Desejosos de ouvir novidades, escolherão para si uma multidão de mestres, ao sabor das paixões, e hão-de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, suporta os trabalhos, evangeliza e consagra-te ao teu ministério» (2 Tim 4, 1-5; cf. Tit 1, 10.13-14).
«Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32)
Não há dúvida que a nossa época adquiriu uma percepção particularmente viva da liberdade. «Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana», como já constatava a Declaração conciliar Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa. Daí a reivindicação de que os homens possam «agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coacção, mas levados pela consciência do dever». Em particular, o direito à liberdade religiosa e ao respeito da consciência no seu caminho para a verdade é sentido cada vez mais como fundamento dos direitos da pessoa, considerados no seu conjunto.
Assim, o sentido mais agudo da dignidade e da unicidade da pessoa humana, bem como do respeito devido ao caminho da consciência, constitui certamente uma conquista positiva da cultura moderna. Esta percepção, em si mesma autêntica, encontrou múltiplas expressões, mais ou menos adequadas, algumas das quais, porém, se afastam da verdade do homem enquanto criatura e imagem de Deus, e requerem, portanto, ser corrigidas ou purificadas à luz da fé.
Como facilmente se compreende, não é alheia a esta evolução,a crise em torno da verdade. Perdida a ideia de uma verdade universal sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente a concepção da consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade original, ou seja, como um acto da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento universal do bem numa determinada situação e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a eleger, aqui e agora; tende-se a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mal e agir em consequência. Esta visão identifica-se com uma ética individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros. Levado às últimas consequências, o individualismo desemboca na negação da ideia mesma de natureza humana.
Estas diversas concepções estão na origem das orientações de pensamento que sustentam a antinomia entre lei moral e consciência, entre natureza e liberdade.
São de lembrar ainda algumas interpretações abusivas da pesquisa científica a nível antropológico. Partindo da grande variedade de tradições, hábitos e instituições existentes na humanidade, concluem, senão sempre pela negação de valores humanos universais, pelo menos com uma concepção relativista da moral.
Algumas tendências da teologia moral hodierna, sob a influência das correntes subjectivistas e individualistas agora lembradas, interpretam de um modo novo a relação da liberdade com a lei moral, com a natureza humana e com a consciência, e propõem critérios inovadores de avaliação moral dos actos: são tendências que, em sua variedade, coincidem no facto de atenuar ou mesmo negar a dependência da liberdade da verdade.
Se queremos realizar um discernimento crítico destas tendências, capaz de reconhecer o que nelas existe de legítimo, útil e válido, e indicar, ao mesmo tempo, as suas ambiguidades, perigos e erros, devemos examiná-las à luz da dependência fundamental da liberdade da verdade, dependência que foi expressa do modo mais claro e autorizado pelas palavras de Cristo: «Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32).