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Ioannes Paulus PP. II Veritatis splendor IntraText CT - Texto |
I. A liberdade e a lei
«Não comas da árvore da ciência do bem e do mal» (Gn 2, 17)
Com esta imagem, a Revelação ensina que não pertence ao homem o poder de decidir o bem e o mal, mas somente a Deus. O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer «de todas as árvores do jardim». Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da «árvore da ciência do bem e do mal», chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização, precisamente nesta aceitação. Deus, que «só é bom», conhece perfeitamente o que é bom para o homem, e, devido ao seu mesmo amor, propõe-lo nos mandamentos.
Portanto, a lei de Deus não diminui e muito menos elimina a liberdade do homem, pelo contrário, garante-a e promove-a. Bem distintas se apresentam, porém, algumas tendências culturais hodiernas, que estão na origem de muitas orientações éticas que colocam no centro do seu pensamento um suposto conflito entre a liberdade e a lei. Tais são as doutrinas que atribuem a simples indivíduos ou a grupos sociais a faculdade de decidir o bem e o mal: a liberdade humana poderia «criar os valores», e gozaria de uma primazia sobre a verdade, até ao ponto de a própria verdade ser considerada uma criação da liberdade. Esta, portanto, reivindicaria tal autonomia moral, que, praticamente, significaria a sua soberania absoluta.
Deve-se reconhecer que, na origem deste esforço de revisão, acham-se algumas instâncias positivas, que em boa parte, aliás, pertencem à melhor tradição do pensamento católico. Solicitados pelo Concílio Vaticano II, quis-se favorecer o diálogo com a cultura moderna, pondo em evidência o carácter racional — e, portanto, universalmente compreensível e comunicável — das normas morais que pertencem ao âmbito da lei moral natural. Pretendeu-se, além disso, confirmar o carácter interior das exigências éticas que dela derivam e que só se impõem à vontade como uma obrigação por força do reconhecimento prévio da razão humana e, em concreto, da consciência pessoal.
Esquecendo, porém, a dependência da razão humana da Sabedoria divina e, no actual estado de natureza decaída, a necessidade, mais, a efectiva realidade da Revelação divina para o conhecimento das verdades morais, mesmo de ordem natural, alguns chegaram a teorizar uma completa soberania da razão no âmbito das normas morais, relativas à recta ordenação da vida neste mundo: tais normas constituiriam o âmbito de uma moral puramente «humana», isto é, seriam a expressão de uma lei que o homem autonomamente daria a si próprio, com a sua fonte exclusiva na razão humana. Desta lei, Deus não poderia de modo algum ser considerado Autor, salvo no sentido que a razão humana exerceria a sua autonomia legislativa por força de um mandato original e total de Deus ao homem. Ora, estas tendências de pensamento levaram a negar, contra a Sagrada Escritura e a doutrina constante da Igreja, que a lei moral natural tenha Deus como autor e que o homem, mediante a sua razão, participe da lei eterna, dado que não é ele a estabelecê-la.
É impossível não ver que uma tal interpretação da autonomia da razão humana comporta teses incompatíveis com a doutrina católica.
Neste contexto, é absolutamente necessário esclarecer, à luz da Palavra de Deus e da tradição viva da Igreja, as noções fundamentais da liberdade humana e da lei moral, como também as suas relações profundas e interiores. Só assim será possível corresponder às justas exigências da racionalidade humana, integrando os elementos válidos de algumas correntes da teologia moral hodierna sem prejudicar o património moral da Igreja com teses derivadas de um conceito erróneo de autonomia.
Deus quis deixar o homem «entregue à sua própria decisão» (Sir 15, 14)
Já o governar o mundo constitui para o homem uma tarefa grande e cheia de responsabilidade, que compromete a sua liberdade na obediência ao Criador: «Enchei e dominai a terra» (Gn 1, 28). Sob este aspecto, compete ao indivíduo, bem como à comunidade humana, uma justa autonomia, à qual a Constituição conciliar Gaudium et spes dedica uma especial atenção. É a autonomia das realidades terrenas, significando que «as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando».
No entanto, o Concílio pede vigilância perante um falso conceito da autonomia das realidades terrenas, ou seja, o de considerar que «as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador». Aplicado depois ao homem, tal conceito de autonomia produz efeitos particularmente danosos, assumindo, em última análise, um carácterateu: «Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece de Deus, a própria criatura se obscurece».
Alguns falam, justamente, de teonomia, ou de teonomia participada, porque a livre obediência do homem à lei de Deus implica, de facto, a participação da razão e da vontade humana na sabedoria e providência de Deus. Proibindo ao homem comer da «árvore da ciência do bem e do mal», Deus afirma que o homem não possui originariamente como própria esta «ciência», mas só participa nela através da luz da razão natural e da revelação divina, que lhe manifestam as exigências e os apelos da sabedoria eterna. A lei, portanto, deve entender-se como uma expressão da sabedoria divina: ao submeter-se a ela, a liberdade submete-se à verdade da criação. Por isso, é necessário reconhecer na liberdade da pessoa humana, a imagem e a proximidade de Deus, que Se «encontra em todos» (cf. Ef 4, 6); da mesma forma, impõe-se confessar a majestade do Deus do universo e venerar a santidade da lei de Deus infinitamente transcendente. Deus semper maior.
Feliz o homem que põe o seu enlevo na lei do Senhor (cf. Sal 1, 1-2)
Na sua inclinação para Deus, para Aquele que «só é bom», o homem deve livremente fazer o bem e evitar o mal. Mas para isso, o homem deve poder distinguir o bem do mal. Fá-lo, antes de mais, graças à luz da razão natural, reflexo no homem do esplendor da face de Deus. Neste sentido, escreve S. Tomás ao comentar um versículo do Salmo 4: «Depois de ter dito: Oferecei sacrifícios de justiça (Sal 4, 6), como se alguns lhe pedissem quais são as obras da justiça, o Salmista acrescenta: Muitos dizem: quem nos fará ver o bem? E, respondendo à pergunta, diz: A luz da Vossa face, Senhor, foi impressa em nós. Como se quisesse dizer que a luz da razão natural, pela qual distinguimos o bem do mal — naquilo que é da competência da lei natural — nada mais é senão um vestígio da luz divina em nós». Disto se deduz também o motivo pelo qual esta lei é chamada lei natural: chama-se assim, não por referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão, que a dita, é própria da natureza humana.
O Concílio remete para a doutrina clássica sobre a lei eterna de Deus. S. Agostinho define-a como «a razão ou a vontade de Deus que manda observar a ordem natural e proibe alterá-la»; S. Tomás identifica-a com «a razão da divina sabedoria que conduz tudo ao devido fim». E a sabedoria de Deus é providência, amor que cuida com diligência. É o próprio Deus, portanto, que ama e cuida, no sentido mais literal e fundamental, de toda a criação (cf. Sab 7, 22; 8, 11). Mas aos homens, Deus provê de um modo diferente do usado com os seres que não são pessoas: não «de fora», através das leis da natureza física, mas «de dentro», mediante a razão que, conhecendo pela luz natural a lei eterna de Deus, está, por isso mesmo, em condições de indicar ao homem a justa direcção do seu livre agir. Deste modo, Deus chama o homem a participar da Sua providência, querendo dirigir o mundo, por meio do próprio homem, ou seja, através do seu cuidado consciencioso e responsável: não só o mundo das coisas, mas também o das pessoas humanas. Neste contexto se situa a lei natural como a expressão humana da lei eterna de Deus: «Em relação às outras criaturas — escreve S. Tomás —, a criatura racional está sujeita de um modo mais excelente à divina providência, enquanto ela também se torna participante da providência ao cuidar de si própria e dos outros. Por isso, ela participa da razão eterna, graças à qual tem uma inclinação natural para o acto e o fim devidos; esta participação da lei eterna na criatura racional é chamada lei natural».
O homem pode reconhecer o bem e o mal, graças àquele discernimento entre o bem e o mal que ele mesmo realiza com a sua razão, em particular com a sua razão iluminada pela Revelação divina e pela fé, em virtude da lei que Deus outorgou ao povo eleito, a começar pelos mandamentos do Sinai. Israel foi chamado a acolher e viver a lei de Deus como particular dom e sinal da eleição e da Aliança divina, e, ao mesmo tempo, como garantia da bênção de Deus. Assim, Moisés podia dirigir-se aos filhos de Israel, perguntando-lhes: «Que povo há tão grande que tenha deuses como o Senhor, nosso Deus, sempre pronto a atender-nos quando O invocamos? Qual é o grande povo, que possua mandamentos e preceitos tão justos como esta Lei que hoje vos apresento? (Dt 4, 7-8). Nos Salmos, encontramos os sentimentos de louvor, gratidão e veneração que o povo eleito é chamado a nutrir pela lei de Deus, a par da exortação a conhecê-la, meditá-la e levá-la à vida: «Feliz do homem que não segue o conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem toma assento na reunião dos enganadores; antes, põe o seu enlevo na lei do Senhor e sobre ela medita, dia e noite» (Sal 1, 1-2); «A lei do Senhor é perfeita, reconforta o espírito; os Seus testemunhos são fiéis, tornam sábio o homem simples. Os Seus mandamentos são rectos, deleitam o coração; os Seus preceitos são puros, iluminam os olhos» (Sal 18 19, 8-9).
Apesar de habitualmente, na reflexão teológico-moral, se distinguirem a lei de Deus positiva ou revelada da lei natural, e, na economia da salvação, a lei «antiga» da lei «nova», não se pode esquecer que estas e outras distinções úteis referem-se sempre à lei, cujo autor é o mesmo e único Deus e o destinatário é o homem. As diversas maneiras como, na história, Deus cuida do mundo e do homem, não só não se excluem entre si, mas, pelo contrário, apoiam-se e compenetram-se mutuamente. Todas elas derivam e terminam no sábio e amoroso desígnio eterno com que Deus predestina os homens «a serem conformes à imagem do Seu Filho» (Rm 8, 29). Neste desígnio, não há qualquer ameaça à verdadeira liberdade do homem: pelo contrário, o seu acolhimento é o único caminho para a afirmação da liberdade.
«O que a lei ordena está escrito nos seus corações» (Rm 2, 15)
Outros moralistas, pelo contrário, preocupados em educar para os valores, mantêm-se sensíveis ao prestígio da liberdade, mas com frequência concebem-na em oposição, ou em contraste, com a natureza material e biológica, sobre a qual deveria progressivamente ir-se afirmando. A propósito disto, diferentes concepções convergem no facto de esquecerem a dimensão de criatura da natureza e desconhecerem a sua totalidade. Para alguns, a natureza fica reduzida a simples material ao dispor do agir humano e do seu poder: ela deveria ser profundamente transformada, antes, superada pela liberdade, dado que constituiria um seu limite e negação. Para outros, é na promoção ilimitada do poder humano ou da sua liberdade, que se constituem os valores económicos, sociais, culturais e até morais: a natureza serviria para significar tudo aquilo que no homem e no mundo se coloca fora da liberdade. Tal natureza compreenderia, em primeiro lugar, o corpo humano, a sua constituição e os seus dinamismos: a este dado físico, opor-se-ia tudo o que é «construído», isto é, a «cultura», como obra e produto da liberdade. A natureza humana, assim entendida, poderia ser reduzida e tratada como mero material biológico ou social, sempre disponível. O que significa, em última análise, definir a liberdade por si mesma, tornando-a uma instância criadora de si própria e dos seus valores. Desta forma, no caso extremo, o homem nem sequer teria natureza, e seria por si mesmo o próprio projecto de existência. O homem nada mais seria que a sua liberdade!
Deverá, além disso, tomar em consideração os modelos de comportamento e os significados que estes assumem numa determinada cultura. E, sobretudo, deverá respeitar o mandamento fundamental do amor de Deus e do próximo. Mas Deus — afirmam ainda — fez o homem como um ser racionalmente livre, deixou-o «entregue à sua própria decisão», e dele espera uma própria formação racional da sua vida. O amor do próximo significaria sobretudo, ou mesmo exclusivamente, respeito pela livre decisão de si próprio. Os mecanismos dos comportamentos típicos do homem e também das chamadas «inclinações naturais», no máximo, estabeleceriam — como dizem — uma orientação geral do comportamento correcto, mas não poderiam determinar a avaliação moral de cada um dos actos humanos, tão complexos do ponto de vista das situações.
Uma liberdade, que pretenda ser absoluta, acaba por tratar o corpo humano como um dado bruto, desprovido de significados e de valores morais enquanto aquela não o tiver moldado com o seu projecto. Consequentemente, a natureza humana e o corpo aparecem como pressupostos ou preliminares, materialmente necessários para a opção da liberdade, mas extrínsecos à pessoa, ao sujeito e ao acto humano. Os seus dinamismos não poderiam constituir pontos de referência para a opção moral, uma vez que as finalidades destas inclinações seriam só bens «físicos», chamados por alguns «pré-morais». Fazer-lhes referência, para procurar indicações racionais sobre a ordem da moralidade, deveria ser qualificado como fisicismo ou biologismo. Em semelhante contexto, a tensão entre a liberdade e uma natureza concebida em sentido redutivo, termina numa divisão no mesmo homem.
Esta teoria moral não está de acordo com a verdade sobre o homem e sobre a sua liberdade. Contradiz os ensinamentos da Igreja sobre a unidade do ser humano, cuja alma racional é per se et essentialiter a forma do corpo. A alma espiritual e imortal é o princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo qual este existe como um todo — «corpore et anima unus» — enquanto pessoa. Estas definições não indicam apenas que o corpo, ao qual é prometida a ressurreição, também participará da glória; elas lembram igualmente a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades corpóreas e sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios actos morais. A pessoa, através da luz da razão e do apoio da virtude, descobre no seu corpo os sinais prévios, a expressão e a promessa do dom de si, de acordo com o sábio desígnio do Criador. É à luz da dignidade da pessoa humana — que se afirma por si própria — que a razão depreende o valor moral específico de alguns bens, aos quais a pessoa está naturalmente inclinada. E tendo em vista que a pessoa humana não é redutível a uma liberdade que se autoprojecta, mas comporta uma estrutura espiritual e corpórea determinada, a exigência moral originária de amar e respeitar a pessoa como um fim e nunca como um simples meio, implica também, intrinsecamente, o respeito de alguns bens fundamentais, sem os quais cai-se no relativismo e no arbitrário.
A lei natural, assim entendida, não deixa espaço à divisão entre liberdade e natureza. De facto, estas estão harmonicamente ligadas entre si, e intimamente aliadas uma à outra.
«Mas ao princípio não foi assim» (Mt 19, 8)
Graças precisamente a esta «verdade», a lei natural implica a universalidade. Aquela, enquanto inscrita na natureza racional da pessoa, impõe-se a todo o ser dotado de razão e presente na história. Para se aperfeiçoar na sua ordem específica, a pessoa deve fazer o bem e evitar o mal, deve vigiar pela transmissão e conservação da vida, aperfeiçoar e desenvolver as riquezas do mundo sensível, promover a vida social, procurar o verdadeiro, praticar o bem, contemplar a beleza.
A cisão criada por alguns entre a liberdade dos indivíduos e a natureza comum a todos, como emerge de certas teorias filosóficas de grande repercussão na cultura contemporânea, obscurece a percepção da universalidade da lei moral por parte da razão. Mas, enquanto exprime a dignidade da pessoa humana e põe a base dos seus direitos e deveres fundamentais, a lei natural é universal nos seus preceitos e a sua autoridade estende-se a todos os homens. Esta universalidade não prescinde da individualidade dos seres humanos, nem se opõe à unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa: pelo contrário, abraça pela raiz cada um dos seus actos livres, que devem atestar a universalidade do verdadeiro bem. Submetendo-se à lei comum, os nossos actos edificam a verdadeira comunhão das pessoas e, pela graça de Deus, exercem a caridade, «vínculo da perfeição» (Col 3, 14). Quando, pelo contrário, desconhecem ou simplesmente ignoram a lei, de forma imputável ou não, os nossos actos ferem a comunhão das pessoas, com prejuízo para todos.
Por outro lado, o facto de que apenas os mandamentos negativos obrigam sempre e em qualquer circunstância, não significa que na vida moral as proibições sejam mais importantes que o compromisso de praticar o bem indicado pelos mandamentos positivos. O motivo é sobretudo o seguinte: o mandamento do amor de Deus e do próximo não tem, na sua dinâmica positiva, qualquer limite superior, mas possui limite inferior, abaixo do qual se viola o mandamento. Além disso, o que deve ser feito numa determinada situação depende das circunstâncias, que não se podem prever todas de antemão; pelo contrário, há comportamentos que em nenhuma situação e jamais podem ser uma resposta adequada — isto é, conforme à dignidade da pessoa. Enfim, é sempre possível que o homem, por coacção ou por outras circunstâncias, seja impedido de levar a cabo determinadas acções boas; porém, nunca pode ser impedido de não fazer certas acções, sobretudo se ele está disposto a morrer antes que fazer o mal.
A Igreja sempre ensinou que nunca se devem escolher comportamentos proibidos pelos mandamentos morais, expressos de forma negativa no Antigo e no Novo Testamento. Como vimos, Jesus mesmo reitera a irrevogabilidade destas proibições: «Se queres entrar na vida, cumpre os mandamentos (...): não matarás; não cometerás adultério; não roubarás, não levantarás falso testemunho» (Mt 19, 17-18).
Não se pode negar que o homem sempre existe dentro de uma cultura particular, mas também não se pode negar que o homem não se esgota nesta mesma cultura. De resto, o próprio progresso das culturas demonstra que, no homem, existe algo que transcende as culturas. Este «algo» é precisamente a natureza do homem: esta natureza é exactamente a medida da cultura, e constitui a condição para que o homem não seja prisioneiro de nenhuma das suas culturas, mas afirme a sua dignidade pessoal pelo viver conforme à verdade profunda do seu ser. Pôr em discussão os elementos estruturais permanentes do homem, conexos também com a própria dimensão corpórea, não só estaria em conflito com a experiência comum, mas tornaria incompreensível a referência que Jesus fez ao «princípio», precisamente onde o contexto social e cultural da época tinha deformado o sentido original e o papel de algumas normas morais (cf. Mt 19, 1-9). Neste sentido, a Igreja afirma que «subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre». É Ele o «Princípio» que, tendo assumido a natureza humana, a ilumina definitivamente nos seus elementos constitutivos e no seu dinamismo de caridade para com Deus e o próximo.
Ocorre, sem dúvida, procurar e encontrar, para as normas morais universais e permanentes, a formulação mais adequada aos diversos contextos culturais, mais capaz de lhes exprimir incessantemente a actualidade histórica, de fazer compreender e interpretar autenticamente a sua verdade. Esta verdade da lei moral — como a do «depósito da fé» — explicita-se ao longo dos séculos: as normas que a exprimem, permanecem válidas em sua substância, mas devem ser precisadas e determinadas «eodem sensu eademque sententia » conforme as circunstâncias históricas do Magistério da Igreja, cuja decisão é precedida e acompanhada pelo esforço de leitura e de formulação próprio da razão dos crentes e da reflexão teológica.