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Ioannes Paulus PP. II Veritatis splendor IntraText CT - Texto |
IV. O acto moral
Teleologia e teleologismo
Os actos humanos são actos morais, porque exprimem e decidem a bondade ou malícia do homem que realiza aqueles actos. Eles não produzem apenas uma mudança do estado das coisas externas ao homem, mas, enquanto escolhas deliberadas, qualificam moralmente a pessoa que os faz e determinam a sua profunda fisionomia espiritual, como sublinha sugestivamente S. Gregório de Nissa: «Todos os seres sujeitos a transformação nunca ficam idênticos a si próprios, mas passam continuamente de um estado a outro por uma mudança que sempre se dá, para o bem ou para o mal (...) Ora, estar sujeito a mudança é nascer continuamente (...) Mas aqui o nascimento não acontece por uma intervenção alheia, como se dá nos seres corpóreos (...) Aquele é o resultado de uma livre escolha e nós somos assim, de certo modo, os nossos próprios pais, ao criarmo-nos como queremos, e, pela nossa escolha, dotarmo-nos da forma que queremos».
A ordenação racional do acto humano para o bem na sua verdade e a procura voluntária deste bem, conhecido pela razão, constituem a moralidade. Portanto, o agir humano não pode ser considerado como moralmente bom só porque destinado a alcançar este ou aquele objectivo que persegue, ou simplesmente porque a intenção do sujeito é boa. O agir é moralmente bom, quando atesta e exprime a ordenação voluntária da pessoa para o fim último e a conformidade da acção concreta com o bem humano, tal como é reconhecido na sua verdade pela razão. Se o objecto da acção concreta não está em sintonia com o verdadeiro bem da pessoa, a escolha de tal acção torna a nossa vontade e nós próprios moralmente maus e, portanto, põe-nos em contraste com o nosso fim último, o bem supremo, isto é, o próprio Deus.
Neste sentido, a vida moral possui um essencial carácter «teleológico», visto que consiste na ordenação deliberada dos actos humanos para Deus, sumo bem e fim (telos) último do homem. Comprova-o, mais uma vez, a pergunta do jovem a Jesus: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Mas esta ordenação ao fim último não é uma dimensão subjectivista, que depende só da intenção. Ela pressupõe que aqueles actos sejam em si próprios ordenáveis a um tal fim, enquanto conformes ao autêntico bem moral do homem, tutelado pelos mandamentos. É o que lembra Jesus na resposta ao jovem: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19, 17).
Evidentemente deve ser uma ordenação racional e livre, consciente e deliberada, baseado na qual o homem é «responsável» dos seus actos e está sujeito ao juízo de Deus, juiz justo e bom, que premeia o bem e castiga o mal, como nos lembra o apóstolo Paulo: «Todos, com efeito, havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito, enquanto estava no corpo» (2 Cor 5, 10).
Este é o problema tradicionalmente chamado das «fontes da moralidade». Precisamente a respeito de tal problema, nestes decénios manifestaram-se — ou reconstituiram-se — novas tendências culturais e teológicas que exigem um cuidadoso discernimento por parte do Magistério da Igreja.
Algumas teorias éticas, denominadas «teleológicas», mostram-se atentas à conformidade dos actos humanos com os fins procurados pelo agente e com os valores que ele tem em vista. Os critérios para avaliar a rectidão moral de uma acção são deduzidos da ponderação dos bens não morais ou pré-morais a conseguir e dos correspondentes valores não morais ou pré-morais a respeitar. Para alguns, o comportamento concreto seria justo ou errado, segundo pudesse ou não produzir um melhor estado de coisas para todas as pessoas interessadas: seria justo o comportamento em grau de «maximizar» os bens e «minimizar» os males.
Muitos dos moralistas católicos, que seguem esta orientação, procuram distanciar-se do utilitarismo e do pragmatismo, que avaliam a moralidade dos actos humanos sem fazer referência ao verdadeiro fim último do homem. Aqueles sentem justamente a necessidade de encontrar argumentações racionais, sempre mais consistentes, para justificar as exigências e fundamentar as normas da vida moral. Tal pesquisa é legítima e necessária, visto que a ordem moral, estabelecida pela lei natural, é, em princípio, acessível à razão humana. Além disso, é uma pesquisa que corresponde às exigências do diálogo e colaboração com os não-católicos e os não-crentes, especialmente nas sociedades pluralistas.
As teorias éticas teleológicas (proporcionalismo, consequencialismo), apesar de reconhecerem que os valores morais são indicados pela razão e pela Revelação, consideram que nunca se poderá formular uma proibição absoluta de comportamentos determinados que estariam em contradição com aqueles valores, em toda e qualquer circunstância e cultura. O sujeito que age seria certamente responsável pela obtenção dos valores pretendidos, mas segundo um duplo aspecto: de facto, os valores ou bens implicados num acto humano seriam, por um lado, de ordem moral (relativamente a valores propriamente morais, como o amor de Deus, a benevolência para com o próximo, a justiça, etc.) e, por outro, de ordem pré-moral, também chamada não moral, física ou ôntica (relativamente às vantagens e desvantagens ocasionadas seja a quem age, seja a qualquer pessoa neles implicada antes ou depois, como por exemplo, a saúde ou a sua lesão, a integridade física, a vida, a morte, a perda de bens materiais, etc.). Num mundo onde o bem sempre estaria misturado com o mal e cada efeito bom ligado a outros efeitos maus, a moralidade do acto seria julgada de maneira diferenciada: a sua «bondade» moral, com base na intenção do sujeito referida aos bens morais, e a sua «rectidão», com base na consideração dos efeitos ou consequências previsíveis e da sua proporção. Consequentemente, os comportamentos concretos seriam qualificados como «rectos» ou «errados», sem que, por isso, fosse possível avaliar como moralmente «boa» ou «má» a vontade da pessoa que os escolhe. Deste modo, um acto, que, pondo-se em contradição com uma norma universal negativa, viola directamente bens considerados como «pré-morais», poderia ser qualificado como moralmente aceitável se a intenção do sujeito se concentrasse, graças a uma ponderação «responsável» dos bens implicados na acção concreta, sobre o valor moral considerado decisivo naquela circunstância.
A avaliação das consequências da acção, com base na proporção do acto com os seus efeitos e dos efeitos entre si, referir-se-ia apenas à ordem pré-moral. Quanto à especificidade moral dos actos, ou seja, quanto à sua bondade ou malícia, decidiria exclusivamente a fidelidade da pessoa aos valores mais altos da caridade e da prudência, sem que esta fidelidade fosse necessariamente incompatível com opções contrárias a certos preceitos morais particulares. Mesmo em matéria grave, estes últimos deveriam ser considerados como normas operativas, sempre relativas e susceptíveis de excepções.
Nesta perspectiva, o consentimento deliberado a certos comportamentos, declarados ilícitos pela moral tradicional, não implicaria uma malícia moral objectiva.
O objecto do acto deliberado
Porém, tais teorias não são fiéis à doutrina da Igreja, já que crêem poder justificar como moralmente boas, escolhas deliberadas de comportamentos contrários aos mandamentos da lei divina e natural. Estas teorias não podem apelar à tradição moral católica: se é verdade que nesta última se desenvolveu uma casuística atenta a ponderar em algumas situações concretas as possibilidades maiores de bem, também é certo que isso se confinava apenas aos casos onde a lei era incerta, e portanto, não punha em discussão a validade absoluta dos preceitos morais negativos que obrigam sem excepções. Os fiéis hão-de reconhecer e respeitar os preceitos morais específicos, declarados e ensinados pela Igreja em nome de Deus, Criador e Senhor. Quando o apóstolo Paulo recapitula o cumprimento da lei no preceito de amar o próximo como a si mesmo (cf. Rm 13, 8-10), não atenua os mandamentos, mas antes, os confirma, dado que revela as suas exigências e gravidade. O amor de Deus e o amor do próximo são inseparáveis da observância dos mandamentos da Aliança, renovada no sangue de Jesus Cristo e no dom do Espírito. Os cristãos têm por própria honra obedecer a Deus antes que aos homens (cf. Act 4, 19; 5, 29) e, por isso, aceitar inclusive o martírio, como fizeram os santos e santas do Antigo e do Novo Testamento, assim reconhecidos por terem dado a sua vida antes que fazerem este ou aquele gesto particular contrário à fé ou à virtude.
Aliás, cada um conhece as dificuldades — ou melhor, a impossibilidade — de avaliar todas as consequências e todos os efeitos bons ou maus — definidos pré-morais — dos próprios actos: não é possível um cálculo racional exaustivo. Então, como fazer para estabelecer proporções que dependem de uma avaliação, cujos critérios permanecem obscuros? De que modo se poderá justificar uma obrigação absoluta sobre cálculos tão discutíveis?
A razão pela qual não basta a recta intenção, mas ocorre também a recta escolha das obras, está no facto de que o acto humano depende do seu objecto, quer dizer, se este é ou não ordenável a Deus, Aquele que «só é bom», realizando assim a perfeição da pessoa. Portanto, o acto é bom, se o seu objecto é conforme ao bem da pessoa, no respeito dos bens moralmente significativos para ela. Assim, a ética cristã, que privilegia a atenção ao objecto moral, não recusa considerar a «teleologia» interior do agir, enquanto visa promover o verdadeiro bem da pessoa, mas reconhece que este só é realmente procurado quando se respeitam os elementos essenciais da natureza humana. O acto humano, bom segundo o seu objecto, é também ordenável ao fim último. O mesmo acto alcança, depois, a sua perfeição última e decisiva, quando a vontade o ordena efectivamente para Deus mediante a caridade. Neste sentido, ensina o Patrono dos moralistas e dos confessores: «Não basta fazer boas obras, é preciso fazê-las bem. Para que as nossas obras sejam boas e perfeitas, é necessário fazê-las com o mero fim de agradar a Deus».
O «mal intrínseco»: não é lícito praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8)
O elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objecto do acto humano, o qual decide sobre o seu ordenamento ao bem e ao fim último que é Deus. Este ordenamento é identificado pela razão no mesmo ser do homem, considerado na sua verdade integral, e portanto, nas suas inclinações naturais, nos seus dinamismos e nas suas finalidades que têm sempre também uma dimensão espiritual: são exactamente estes os conteúdos da lei natural, e consequentemente o conjunto ordenado dos «bens para a pessoa» que se põem ao serviço do «bem da pessoa», daquele bem que é ela mesma e a sua perfeição. São estes os bens tutelados pelos mandamentos, os quais, segundo S. Tomás, contêm toda a lei natural.
Sobre os actos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas contraceptivas pelas quais o acto conjugal se torna intencionalmente infecundo, Paulo VI ensina: «Na verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com o fim de evitar um mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito, nem mesmo por gravíssimas razões, praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8), ou seja, fazer objecto de um acto positivo de vontade o que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo com o intuito de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares ou sociais».
Se os actos são intrinsecamente maus, uma intenção boa ou circunstâncias particulares podem atenuar a sua malícia, mas não suprimi-la: são actos «irremediavelmente» maus, que por si e em si mesmos não são ordenáveis a Deus e ao bem da pessoa: «Quanto aos actos que, por si mesmos, são pecados (cum iam opera ipsa peccata sunt) — escreve S. Agostinho — como o furto, a fornicação, a blasfémia ou outros actos semelhantes, quem ousaria afirmar que, realizando-os por boas razões (causis bonis), já não seriam pecados ou, conclusão ainda mais absurda, que seriam pecados justificados?».
Por isso, as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto «subjectivamente» honesto ou defensível como opção.
A doutrina do objecto como fonte da moralidade constitui uma explicitação autêntica da moral bíblica da Aliança e dos mandamentos, da caridade e das virtudes. A qualidade moral do agir humano depende desta fidelidade aos mandamentos, expressão de obediência e amor. É por isso — repetimo-lo — que se deve rejeitar como errónea a opinião que considera impossível qualificar moralmente como má segundo a sua espécie, a opção deliberada de alguns comportamentos ou de certos actos, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele acto para todas as pessoas interessadas. Sem esta determinação racional da moralidade do agir humano, seria impossível afirmar uma «ordem moral objectiva» e estabelecer qualquer norma determinada, do ponto de vista do conteúdo, que obrigasse sem excepção; e isto reverteria em dano da fraternidade humana e da verdade sobre o bem, e em prejuízo também da comunhão eclesial.
Porém, é preciso que nós, Irmãos no Episcopado, não nos detenhamos só a admoestar os fiéis sobre os erros e os perigos de algumas teorias éticas. Devemos, antes de mais, mostrar o esplendor fascinante daquela verdade, que é Jesus Cristo. N'Ele, que é a Verdade (cf. Jo 14, 6), o homem pode compreender plenamente e viver perfeitamente, mediante os actos bons, a sua vocação à liberdade na obediência à lei divina, que se resume no mandamento do amor de Deus e do próximo. É o que acontece com o dom do Espírito Santo, Espírito de verdade, de liberdade e de amor: n'Ele, é-nos concedido interiorizar a lei, percebê-la e vivê-la como o dinamismo da verdadeira liberdade pessoal: «a lei perfeita é a lei da liberdade» (Tg 1, 25).