II.
O CELIBATO NA VIDA DA IGREJA
Antigüidade
35. Muito
instrutivo seria, embora demasiado longo, o estudo dos documentos históricos
sobre o celibato eclesiástico. Uma alusão apenas. Os Padres e escritores
eclesiásticos da antiguidade cristã dão testemunho da difusão, tanto no Oriente
como no Ocidente, da livre prática do celibato nos sagrados
ministros,20 em virtude da grande conveniência dele com a total
dedicação ao serviço de Cristo e da Igreja.
Igreja do Ocidente
36. Desde os
inícios do século IV, a Igreja do Ocidente, por meio das decisões de vários
Concílios provinciais e dos Sumos Pontífices, corroborou, difundiu e sancionou
esta prática.21 Foram sobretudo os supremos Pastores e Mestres da Igreja
de Deus, guardas e intérpretes do patrimônio da fé e dos santos costumes
cristãos, quem promoveu, defendeu e restaurou o celibato eclesiástico nas
épocas sucessivas da história, ainda mesmo quando no próprio clero surgiam
oposições a ele e os costumes da sociedade favoreciam pouco os heroísmos da
virtude. A obrigação do celibato foi solenemente sancionada pelo Concílio
Ecumênico de Trento 22 e por fim inserida no Código de Direito Canônico
(can.132 § 1).
Recente magistério
pontifício
37. Os Sumos
Pontífices mais recentes empregaram o seu ardentíssimo zelo e doutrina em
iluminar o clero e estimulá-lo a essa observância. 23 Não queremos
deixar de render aqui especial homenagem à piíssima memória do nosso imediato
predecessor, ainda vivo no coração do mundo, o qual, no Sínodo Romano e com a
sincera anuência do nosso clero da Urbe, pronunciou as seguintes palavras:
"Amargura-nos saber... que alguns fantasiam sobre o desejo ou a
conveniência, que haveria para a Igreja católica, em renunciar ao que por
tantos séculos foi e continua a ser uma das mais nobres e mais puras glórias do
sacerdócio. A lei do celibato eclesiástico, com o empenho de fazê-la
prevalecer, continua a evocar as batalhas dos tempos heróicos, quando a Igreja teve
que lutar e venceu, evoca o triunfo do seu trinômio glorioso, que será sempre
emblema de vitória: Igreja de Cristo, livre, casta e católica".24
Igreja do Oriente
38. Se é
diferente a legislação da Igreja Oriental em matéria de disciplina celibatária
para o clero, como foi finalmente estabelecido no Concílio Trulano do ano 692
25 e abertamente reconhecido pelo Concílio Ecumênico Vaticano II,
26 deve-se a uma situação histórica, também diversa, daquela parte nobilíssima
da Igreja, à qual o Espírito Santo conformou providencial e sobrenaturalmente o
seu influxo.
Aproveitamos esta ocasião para
exprimir os nossos sentimentos de estima e de respeito por todo o clero das
Igrejas Orientais, e para reconhecer nele os exemplos de fidelidade e de zelo
que o tornam digno de sincera veneração.
A voz dos Padres Orientais
39. Mas a
apologia que os Padres Orientais fizeram da virgindade é-nos igualmente motivo de
conforto para perseverarmos na observância da disciplina sobre o celibato do
clero. Ainda hoje faz eco no nosso coração, por exemplo, a voz de São Gregório
Nisseno, quando nos recorda que "a vida virginal é a imagem da felicidade
que nos espera no mundo que há de vir". 27 Nem é menos confortante
o louvor, em que ainda hoje meditamos, dado por São João Crisóstomo ao
sacerdócio quando pretendia fazer ressaltar a necessária harmonia que deve
reinar entre a vida particular do ministro do altar e a dignidade de que está
revestido, em função dos seus deveres sagrados: "...quem se aproxima do
sacerdócio, deve ser puro como se estivesse no céu". 28
Indicações significativas
na tradição oriental
40. Além
disso, não será inútil observar que, mesmo no Oriente, somente os sacerdotes
celibatários são sagrados bispos, e nunca os sacerdotes podem contrair
matrimônio depois da ordenação; o que faz compreender como também aquelas
venerandas Igrejas possuem, em certo modo, o princípio do sacerdócio
celibatário e o de certa conveniência do celibato para o sacerdócio cristão, do
qual os bispos têm o auge e a plenitude. 29
Fidelidade da Igreja
ocidental à própria tradição
41. Em todo o caso,
a Igreja ocidental nâo pode faltar em sua fidelidade à própria antiga tradiçâo;
nem poderá passar pela cabeça de ninguém que ela tenha seguido durante séculos
um caminho que, em vez de favorecer a riqueza espiritual dos indivíduos e do
Povo de Deus, a tenha de algum modo comprometido, ou levado a oprimir, com
arbitrárias intervenções jurídicas, a livre expansão das mais profundas
realidades da natureza e da graça.
Alguns casos particulares
42. Em virtude
da norma fundamental do governo da Igreja católica, a que aludimos acima
(n.15), se, por um lado, permanece firme a lei que exige a escolha livre e
perpétua do celibato naqueles que são admitidos às Ordens sacras, por outro,
poderá admitir-se o estudo das condições peculiares de sacerdotes casados,
membros de Igrejas ou comunidades cristãs ainda separadas da comunhão católica,
os quais desejando aderir à plenitude desta comunhão e nela exercer o sagrado
ministério, forem admitidos às funções sacerdotais. Mas há de ser de tal forma
que não causem prejuízo à disciplina vigente sobre o sagrado celibato.
E como prova de que a autoridade
da Igreja não se recusa ao exercício deste poder, temos o fato, previsto pelo
recente Concílio Ecumênico, da concessão do diaconado também a homens casados de
idade madura. 30
Confirmação
43. Tudo isto
porém não significa relaxamento da lei vigente, nem tampouco deve ser
interpretado como prelúdio da sua abolição. Em vez de se favorecer esta
hipótese que enfraquece nos ânimos a força e o amor, pelos quais o celibato se
torna seguro e feliz, e obscurece a verdadeira doutrina que justifica a sua
existência e glorifica o seu esplendor, há de promover-se o estudo em defesa do
conceito espiritual e do valor moral da virgindade e do celibato. 31
Confiança da Igreja
44. A
virgindade consagrada é certamente dom especial. Mas a Igreja inteira da nossa
época, representada solene e universalmente pelos seus Pastores responsáveis, e
respeitando, como dizíamos, a disciplina das Igrejas orientais, manifestou a
sua plena certeza no Espírito de "que o dom do celibato, tão em harmonia
com o sacerdócio do Novo Testamento, será concedido liberalmente pelo Pai,
desde que os participantes do sacerdócio de Cristo pelo sacramento da Ordem, e
toda a Igreja, humilde e insistentemente o peçam". 32
Oração do Povo de Deus
45. Nós
convocamos em espírito todo o Povo de Deus para que em cumprimento do dever de
fomentar as vocações sacerdotais, 33 se dirija insistentemente ao Pai
comum, ao divino Esposo da Igreja e ao Espírito Santo que é a sua alma, pedindo
que pela intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Cristo e da Igreja,
derramem especialmente no nosso tempo esse dom divino, do qual o Pai não é certamente
avaro, e façam que as almas se disponham a recebê-lo com espírito de fé
profunda, e de amor generoso. Assim, neste nosso mundo que necessita da glória
de Deus (cf. Rom 3,23), os sacerdotes, tornando-se cada vez mais perfeitamente
conformes ao único e sumo Sacerdote, serão irradiante glória de Cristo (cf.
2Cor 8,23), e por meio deles resplandecerá "a glória da graça" de
Deus, no mundo atual (cf. Ef 1,6).
Mundo atual e celibato
consagrado
46. Sim,
Veneráveis e caríssimos Irmãos no sacerdócio, que amamos "com a ternura de
Jesus Cristo" (Fl 1,8), o mundo em que hoje vivemos, perturbado por uma
crise de crescimento e de transformação, justamente orgulhoso dos valores e das
conquistas humanas, tem neste momento, necessidade urgente do testemunho de
vidas consagradas aos mais altos e sagrados valores espirituais, para que não
lhe falte a rara e incomparável luz das mais sublimes conquistas do espírito.
Escassez numérica de sacerdotes
47.
Nosso Senhor Jesus Cristo não temeu contar a um punhado de homens, que todos
teríamos julgado insuficientes tanto em número como em qualidade, o encargo
imenso da evangelização do mundo até então conhecido; e ordenou a essa
"pequena grei" que não tivesse receio (cf. Lc 12,32), porque alcançaria
com Ele e por Ele, a vitória sobre o mundo (Jo 16,33) graças à constante
assistência que lhe daria (Mt 28,20). Advertiu-nos também Jesus de que o Reino
de Deus possui uma força íntima e secreta, que o faz crescer e chegar à messe
sem que o homem saiba como (cf. Mc 4,26-29). Essa messe do Reino de Deus é
grande, e os operários ainda são poucos, como ao princípio; ou por outra, nunca
chegaram a ser tão numerosos, que se pudessem dizer suficientes segundo os
cálculos humanos. Mas o
Senhor do Reino exige que se reze, para que o Dono da messe mande operários
para o seu campo (Mt 9,37-38). Os planos e a prudência dos homens não podem
sobrepor-se à misteriosa sabedoria daquele que, na história da salvação,
desafiou a sabedoria e o poder do homem com a sua insensatez e fraqueza (1Cor
1,20-31).
Coragem da fé
48. Nós
fazemos apelo à coragem da fé, para exprimir a profunda convicção que a Igreja
nutre de que uma resposta mais responsável e generosa à graça, uma confiança
mais explicita e qualificada na sua força misteriosa e transformadora, um
testemunho mais aberto e completo dado ao mistério de Cristo, nunca a farão
errar na sua missão salvadora para com o mundo inteiro, sejam quais forem os
cálculos humanos e as aparências exteriores. Não esqueçamos que tudo podemos
naquele que é o único a dar força às almas (cf. Fl 4,13) e incremento à sua
Igreja (cf.1Cor 3,6-7).
Raiz do problema
49. Não se
pode acreditar sem reservas que, abolido o celibato eclesiástico, as vocações
sacerdotais cresceriam por isso mesmo e de forma considerável: a experiência
contemporânea das Igrejas e das comunidades eclesiais que permitem o matrimônio
aos seus ministros, parece depor em contrário. A rarefação das vocações
sacerdotais deve ser procurada principalmente noutras causas: por exemplo, na
perda ou na diminuição do sentido de Deus e do que é sacro nos indivíduos e nas
famílias, e na perda da estima pela Igreja como instituição de salvação
mediante a fé e os sacramentos. O problema tem portanto que ser estudado na sua
verdadeira raiz.
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