III.
CELIBATO E VALORES HUMANOS
Celibato e amor
50. A Igreja,
como dizíamos acima (cf. n.10), não ignora que a escolha do celibato
consagrado, implicando uma série de severas renúncias que atingem o íntimo do
homem, traz também consigo graves dificuldades e problemas a que são
particularmente sensíveis os homens de hoje. Poderia, de fato, parecer que o
celibato nâo condiz com o solene reconhecimento dos valores humanos por parte da
Igreja no recente Concílio Ecumênico. Mas, se refletirmos mais atentamente,
veremos que o sacrifício do amor humano, tal como é vivido na família, feito
pelo sacerdote por amor de Cristo, é na realidade homenagem singular prestada a
esse amor. É fato universalmente reconhecido, que a criatura humana soube
oferecer sempre a Deus o que é digno de quem dá e de quem recebe.
Graça e natureza
51. A Igreja,
por outro lado, não pode nem deve ignorar que a escolha do celibato é obra da
graça, quando é feita com prudência humana e cristã e com responsabilidade. Mas
a graça não destrói nem violenta a natureza: eleva-a e dá-lhe capacidade e
vigor sobrenatural. Deus que criou e remiu o homem, sabe o que lhe pode pedir e
dá-lhe tudo o que é necessário para poder fazer o que o Criador e Redentor lhe
pede. Santo Agostinho, tendo experimentado ampla e dolorosamente em si mesmo a
natureza humana, exclamava: "Dá o que ordenas e manda o que queres". 34
Peso real das dificuldades
52. O conhecimento sincero das dificuldades reais do
celibato é muito útil, ou antes, é necessário ao sacerdote, para que ele se dê
conta, com pleno conhecimento, daquilo que o celibato requer para ser autêntico
e benéfico. Mas se queremos proceder com igual sinceridade, não se deve
atribuir a estas dificuldades valor e peso maiores do que têm de fato no
contexto humano e religioso, ou declará-las impossíveis de resolver.
O celibato não vai contra
a natureza
53. Depois do
que a ciência deu como certo, não é justo repetir ainda (cf. n.10) que o
celibato vai contra a natureza, por se opor a legítimas exigências físicas,
psicológicas e afetivas, cuja satisfação seria necessária para a completa
realização e maturidade da pessoa humana. O homem, criado à imagem e semelhança
de Deus (Gn 1,2627), não é somente carne, e o instinto sexual não é tudo nele.
O homem é também e sobretudo inteligência, vontade, liberdade e, graças a estas
faculdades, é e deve ter-se como superior ao universo: elas tornam-no senhor
dos próprios apetites físicos, psicológicos e afetivos.
Razão profunda do celibato
54. A
verdadeira e profunda razão do celibato é, como já dissemos, a escolha duma relação
pessoal mais íntima e completa com o mistério de Cristo e da Igreja, em prol da
humanidade inteira. Nesta escolha há lugar, sem dúvida, para a expressão dos
valores supremos e humanos no grau mais elevado.
Celibato como elevação do
homem
55. A escolha
do celibato não comporta ignorância, ou desprezo do instinto sexual ou da
afetividade, o que teria conseqüências certamente prejudiciais para o
equilíbrio físico e psicológico do sacerdote, mas exige lúcida compreensão,
atento domínio de si mesmo e sapiente sublimação da própria psique, encarada
num plano superior. Deste modo o celibato, elevando integralmente o homem,
contribui efetivamente para a sua perfeição.
Celibato e maturação da
personalidade
56. O desejo
natural e legítimo de o homem amar uma mulher e o de constituir família são
superados pelo celibato, mas não é verdade que o matrimônio e a família sejam a
única via para a maturidade da pessoa humana. No coração do sacerdote não está
extinto o amor. Bebida na mais pura fonte (cf. 1Jo 4,8-16), exercida à imitação
de Cristo e da Igreja, a caridade, como todo o autêntico amor, é exigente e
concreta (cf: 1Jo 3,16-18), abre até ao infinito o horizonte do sacerdote,
aprofunda e dilata-lhe o sentido de responsabilidade, índice de personalidade
madura, desenvolve nele, como expressão de mais alta e ampla paternidade, a
plenitude e delicadeza de sentimentos 35 que o enriquecem com
superabundante medida.
Celibato e matrimônio
57. Todo o
Povo de Deus deve dar testemunho do mistério de Cristo e do seu reino, mas este
testemunho não é unívoco para todos. Deixando aos filhos leigos casados, o
dever do necessário testemunho da vida conjugal e familiar autêntica e
plenamente cristã, a Igreja confia aos sacerdotes o testemunho de vida
totalmente dedicada às mais novas e fascinantes realidades do reino de Deus.
Se ao sacerdote falta a
experiência pessoal e direta da vida de matrimônio, não lhe faltará certamente,
em virtude da formação, do ministério e da graça de estado, um conhecimento do
coração humano, talvez ainda mais profundo, que lhe permitirá atingir esses
problemas na sua fonte, e prestar valioso auxílio aos cônjuges e às famílias
cristãs assistindo-as e aconselhando-as (cf. 1Cor 2,15). A presença, no lar
cristão, do sacerdote que vive em plenitude o celibato, vincará a dimensão
espiritual de todo o amor digno deste nome, e o sacrifício pessoal que ele faz
merecerá para os féis, unidos pelos vínculos do matrimônio, a graça de uma
autêntica união.
Solidão do sacerdote
celibatário
58. É certo: o
sacerdote, pelo seu celibato, é homem solitário. Mas não é solidão vazia,
porque está plena de Deus e da superabundante riqueza do seu reino. Além disso,
ele preparou-se para esta solidão, que deve ser plenitude interior e exterior
de caridade, escolheu-a conscientemente e não por orgulho de ser diferente dos
outros, não para subtrair-se às responsabilidades comuns, não para estremar-se
dos irmãos ou por desestima do mundo. Segregado do mundo, o sacerdote não está
separado do Povo de Deus, porque foi constituído em favor dos homens (Hb 5,1),
consagrado totalmente ao serviço da caridade (cf. lCor 14,4ss) e à obra para
que o Senhor o chamou.36
Cristo e a solidão
sacerdotal
59. Por vezes
a solidão pesará dolorosamente sobre o sacerdote, mas nem por isso há de
arrepender-se de tê-la generosamente escolhido. Também Cristo, nas horas mais
trágicas da vida, ficou só, abandonado mesmo daqueles que tinha escolhido para
testemunhas e companheiros e que Ele tinha amado até ao fim (Jo 13,1), mas
declarou: "Eu não estou só, porque o Pai está comigo" (Jo 16,32).
Quem escolheu ser todo de Cristo há de encontrar, antes de tudo, na intimidade
com Ele e na sua graça, a força de ânimo necessária para dissipar a melancolia
e para vencer os desânimos. Não lhe faltará a proteção da Virgem Mãe de Jesus e
os maternos desvelos da Igreja a cujo serviço se consagrou. Poderá contar com a
solicitude do seu pai em Cristo, o Bispo, com a fraternidade íntima dos irmãos
no sacerdócio e com o conforto de todo o Povo de Deus. E se a hostilidade, a
desconfiança, a indiferença dos homens lhe tornarem por vezes demasiado amarga
a solidão, há de saber compartilhar com dramática evidência a mesma sorte de
Cristo, como o apóstolo que não é maior do que Aquele que o enviou (cf. Jo
13,16;15,18), como o amigo que foi admitido aos segredos mais dolentes e mais
gloriosos do divino Amigo que o escolheu para produzir, num viver aparentemente
de morte, frutos misteriosos de vida (cf. Jo 15,15-16.20).
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