A impunidade
sistemática é uma falta de caridade
a) – para com a
sociedade.
A mesma situação
existe, a título permanente, na sociedade temporal, e, por certo, ninguém se
lembraria de alvitrar que, a título de caridade cristã, fossem abertas as
penitenciárias e rasgados os Códigos Penais. Já se foi, graças a Deus, o tempo
do romantismo, em que as antipatias do público se dirigiam habitualmente contra
o delegado, o promotor, o juiz, e as simpatias se voltavam inteiramente para o
criminoso. Foram funestos os efeitos deste estado de espírito, ao qual em boa
parte se deve a anarquia generalizada, que tantos alarmes causa em nossa época.
Não sabemos porque os resquícios desta mentalidade errônea, frivolamente
sentimental e claramente anti-católica, banida hoje do espírito de todas as
leis, se foi aninhar precisamente em certos ambientes católicos, produzindo por
vezes como conseqüência a manutenção, dentro de nossas organizações, de um
ambiente e de métodos dilatórios tipicamente liberais, hoje proscritos de todas
as nações inclusive as democráticas – e de todas as organizações particulares
de fins profanos, convenientemente estruturadas. Porque foi o erro refugiar-se
precisamente em alguns dos arraiais onde se combate pela Verdade? Os motivos
que nos levam a reputar censurável, absurda, anárquica, a inexistência de penas
efetivas e capazes de incutir temor, nas sociedades profanas, devem levar-nos a
reconhecer que elas também são indispensáveis nos sodalícios religiosos.
Entretanto, não é isto que se pensa ou se pratica em certos setores de nosso
laicato.
Em sentido contrário
deveria animar-nos, no entanto, o exemplo decisivo da Santa Igreja, que em seu
Código de Direito Canônico estatue, define e regulamenta penas severíssimas, e
faz o mesmo quando aprova os Estatutos, Regras ou Constituições das várias
Congregações ou Ordens Religiosas. Se quanto ao Clero e aos Religiosos essa
necessidade se reconhece, que dizer-se então das associações de leigos!
S. Tomás de Aquino
demonstra magnificamente a necessidade de penalidades. No texto que citamos a
propósito da necessidade das leis, externa implicitamente o Doutor máximo sua
opinião a respeito da necessidade das penas, pois que afirma ser uma das
vantagens da lei a perspectiva da pena que, de sua inexecução decorre. E,
francamente, sentimos constrangimento em ter de demonstrar coisa tão evidente.
É claro que, se
tomássemos em consideração o exclusivo interesse da pessoa a quem a pena se
destina, às vezes seria melhor adiar indefinidamente o castigo. Com efeito, há
almas que, sob a ação severa de uma pena, se afastam ainda mais do bem. É
certo, pois, que se deve efetuar a aplicação da pena com muito discernimento,
evitando ambos os excessos, isto é, de jamais remitir um castigo, ou de jamais
o aplicar. Neste assunto, é sobretudo necessário levar na devida conta que toda
a transgressão disciplinar é antes de tudo um atentado contra a finalidade da
associação e, em segundo lugar, uma violação dos direitos da coletividade. À vista de dois valores
de tão alta natureza, devem sacrificar-se até certos interesses individuais
legítimos. E se, com a aplicação de uma
pena algumas almas se endurecem, sofrem com isto um justo castigo que de nenhum
modo deve desarmar a defesa dos direitos da coletividade. O Espírito Santo
descreveu admiravelmente a conduta perversa das almas que desprezam os justos
castigos que merecem, e o fez de modo a indicar claramente que esse
endurecimento era uma conseqüência diante da qual não deveria recuar
sistematicamente o juiz. Assim, diz Ele que "aquele que abandona a
disciplina experimentará a indigência e a ignomínia" (Prov., XIV, 18). E
acrescenta: "O ouvido que ouve as repreensões salutares terá o seu posto
entre os sábios. Aquele que rejeita a correção despreza sua alma, mas o que se
submete às repreensões é possuidor de seu coração. O temor do Senhor ensina a Sabedoria
e a humildade precede a honra" (Prov., XIV, 31-33). “É próprio de homens corrompidos
não amar quem os repreende” (Prov. XV,
12). Por isto, é "bem-aventurado o homem que está sempre com temor, mas o
que é de coração duro cairá no mal" (Prov. XXVIII, 14). Este não poderá
queixar-se legitimamente do castigo que merece, já que "o açoite é para o
cavalo, o freio para o asno e a vara para as costas do insensato" (Prov.,
XXVI, 6).
Aliás, que vantagem pode auferir uma associação religiosa, conservando em seu
grêmio membros tais? De que maneira podem servir? Diz o Espírito Santo: O homem apóstata é um homem
inútil, que caminha com boca perversa" (Prov., VI, 12). E acrescenta:
"Com depravado coração maquina o mal, e em todo o tempo semeia
distúrbios" (Prov., VI, 14). Seu apostolado é estéril: "nos frutos do
ímpio não há senão turbação" (Prov., XV, 6).
Aliás, cumpre notar,
como já dissemos, que há almas refratárias ao apostolado pela profunda malícia
em que se encontram, como diz a Sabedoria (I, 4-5): – "Na alma maligna não
entrará a Sabedoria, nem habitará no corpo sujeito a pecado, porque o Espírito
Santo, que ensina, foge das ficções e afasta-se dos pensamentos desatinados e é
expulso pela iniqüidade superveniente". É destas almas malignas que diz
ainda a Sabedoria (I, 16): – "Os ímpios chamaram a morte com as suas obras
e palavras; e, julgando-a amiga, desvaneceram-se e fizeram aliança com ela,
porque eram dignos de tal sociedade". É destas almas que diz a Escritura:
"O coração do insensato é como um vaso quebrado; nada pode reter da
Sabedoria". (Eclesiástico, XXI, 18). E ainda: "A Sabedoria é para o
insensato como uma base arruinada; e a ciência do insensato reduz-se a palavras
mal digeridas". (Eclesiástico, XXI, 21). Para que procurar reter a todo
transe, com risco para os bons, desedificação geral e perigo para a disciplina,
almas deste estofo? "Aquele que ensina o insensato é como o que quer
tornar a unir os cacos de um vaso quebrado. Aquele que fala da Sabedoria ao
insensato é como o que fala a um homem adormecido, o qual, no fim do discurso,
dirá: – Quem é este?" (Eclesiástico, XXII, 7-9). “Não deis aos cães o que
é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para que não suceda que eles
as calquem aos pés, e que voltando-se contra vós, vos dilacerem” (S. Mat., VII,
6).
Esta invulnerabilidade
à ação apostólica é por vezes um castigo de Deus, e, conservando um associado
assim em seu grêmio a A. C. tem dentro de si uma raiz de pecado que só um
grande e raro milagre da graça pode reconduzir ao bom espírito.
Às vezes, essa
cegueira é obra do demônio. A Escritura se refere mais de uma vez a tal
cegueira: "Se nosso Evangelho ainda está encoberto, é para aqueles que se
perdem que está encoberto; para aqueles de quem o deus deste século cegou os
entendimentos, para que não resplandeça para eles a luz do Evangelho da glória
de Cristo, o qual é a imagem da glória de Deus" (2, Cor., 4, 3-4).
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