Essas doutrinas são
errôneas porque pressupõem um panorama falso
A primeira observação
que temos de formular a respeito de tantos erros, é que eles procedem do
pressuposto falso de que todas ou quase todas as almas afastadas da Igreja se
encontram na mesma situação psicológica, isto é, que, sem obstáculos interiores
outros que não os puramente intelectuais e sentimentais aguardam a terapêutica
estratégica da A. C., afim de se salvarem. E por isto é falsa a idéia de que só
um método de apostolado pode servir à A. C., isto é, o método das meias
verdades, das meias tintas e das meias palavras.
Não contestamos que
esta ou aquela alma fora da Igreja, se encontre na situação acima descrita, e
que algumas destas almas – não todas – podem ser conduzidas à verdade pela
utilização deste método todo de contemporizações e dilações.
Há, porém, grave erro
em supor que a grande generalidade dos que se encontram fora da Igreja dela
estejam afastados por preconceitos meramente intelectuais e equívocos
emocionais.
Queira-se ou não se
queira, o pecado original, mesmo no homem batizado, não deixou apenas na
inteligência, mas ainda na vontade e na sensibilidade graves e lamentáveis
efeitos, em conseqüência do que todos as homens sentem uma inclinação para o
mal, que só conseguem vencer por meio de lutas, por vezes heróicas. Para
demonstrá-lo não devemos procurar exemplos nas lutas que, contra suas próprias
inclinações, são forçados a desferir os pecadores que começam a emergir de uma
vida toda cheia de vícios. Basta correr os olhos pelas vidas dos Santos, para
se ver que estes, as vezes depois de anos inteiros vividos na observância das
mais austeras virtudes e até depois de haverem adquirido um elevado grau de
intimidade com Deus, foram forçados a praticar contra si mesmos as maiores
violências, afim de não cometerem ações altamente censuráveis. São Bento,
retirado do mundo e já todo entregue às contemplações divinas, teve de rolar
sobre espinhos, afim de apagar a concupiscência que o arrastava ao pecado. São
Bernardo, atirou-se em um lago, afim de obter a mesma vitória. Bispo, Doutor da
Igreja, fundador de uma Congregação Religiosa, Santo Afonso de Ligório, aos
noventa anos de idade, ainda sentia em si as investidas da concupiscência. Por
ai se compreendem os embaraços que o pecado original cria ao cumprimento da
doutrina católica por parte dos fiéis, embaraços estes tão grandes, que a moral
católica é decididamente superior às exclusivas forças humanas, e é heresia
sustentar que é possível ao homem, com suas próprias forças, e sem o auxilio
sobrenatural da graça, praticar de modo durável a totalidade dos mandamentos.
Resumindo tudo quanto dissemos, e para que se veja que não exageramos,
concluamos com palavras de Leão XIII. Disse o grande Papa que seguir a moral
católica "é uma ingente tarefa, que exige muitas vezes grande esforço,
energia e constância. Com efeito, apesar da renovação da natureza humana pelos
benefícios da Redenção, subsiste em cada um de nós uma espécie de doença, de enfermidade
e de corrupção. Apetites diversos atraem o homem vigorosamente para este ou
aquele lado, e as seduções exteriores levam facilmente sua alma a procurar
antes o que lhe agrada do que a seguir os mandamentos de Jesus Cristo. É-nos, pois, necessário
reagir e lutar, com todas as forças, contra nossas paixões. Nessa luta contra si mesmo, deve cada qual estar
disposto a suportar os obstáculos e os sofrimentos por causa de Cristo. É
difícil rejeitar os objetos que têm tanto atrativo e encanto; é duro e penoso
desprezar o que se chama os bens do corpo e da fortuna, afim de se conformar
com a vontade soberana do Mestre, que é Cristo; mas é necessário que o cristão
tenha paciência e coragem até o fim, se ele quer viver cristãmente o tempo de
sua vida" (Encíclica "Tametsi Futura Prospicientibus", 1 de
novembro de 1900). Na Escritura, são muitos os textos que corroboram esta
afirmação do grande Leão XIII: "... os sentidos e os pensamentos do
coração do homem são inclinados para o mal desde a sua mocidade" (Gen.,
VIII, 21), adverte o Espírito Santo.
Falamos até aqui só
dos obstáculos criados ao homem pelo pecado original. Quanto mais procedentes serão
nossos argumentos, se também tomarmos em consideração as tentações diabólicas!
Se a vida do fiel implica em tantas lutas, fácil será compreender-se a
aversão que no infiel despertam a simples perspectiva de sua observância, e os
consideráveis obstáculos que sua vontade deve enfrentar antes de fazer,
juntamente com a inteligência, o ato de Fé. Dai decorre que, se muitos fiéis,
sustentados embora pela superabundância de graças existentes dentro da Igreja
não perseveram, no caminho da virtude, chegam às vezes a apostatar e a se
transformar até em inimigos cruéis de Jesus Cristo, os infiéis, confortados com
graças muitas vezes menores, muito mais facilmente serão levados contra a
Igreja ou contra os católicos a uma atitude de má vontade mais ou menos
consciente, mais ou menos explícita, rancorosa por vezes, que está muito longe
da atitude de pomba sem fel, que em certos círculos da A. C. se supõe ser a
única em que se encontram os infiéis.
Daí, nas pugnas apostólicas, um ambiente de luta que, vivida de nossa parte
santamente, e por vezes satanicamente da parte de nossos adversários, existirá
até a consumação dos séculos. Com efeito, diz a Escritura que "os justos
abominam o homem ímpio, e os ímpios abominam aqueles que estão no caminho
reto" (Prov., XXIX, 27). É a realização da irredutível inimizade, criada
pelo próprio Deus, e por isto mesmo fortíssima, que separa dos filhos da Virgem
Santíssima, os filhos da serpente: "Inimicitias ponam inter te et
mulierem".
Por isso, "contra
o mal está o bem, e contra a morte, a vida; assim também contra o homem justo
está o pecador. Considera assim todas as obras do Altíssimo. Acha-las-ás duas a duas, e uma oposta a outra"
(Eclesiástico, XXIII, 15). E a isto se reduz a generalidade dos "equívocos
sentimentais", de que, na concepção errada que vimos combatendo, os
infiéis seriam antes vítimas do que réus. Nas vésperas de sua conversão, o grande
Agostinho ainda sentia obstáculos morais fortíssimos, que eram suscitados pela
concupiscência, e em suas admiráveis "Confissões" nos narra a luta
titânica que teve de travar antes de chegar ao porto que é a Igreja. É este o
depoimento que, em via de regra, os convertidos prestam a respeito de sua
conversão, operada em geral através de lances verdadeiramente trágicos, em que
a razão luta contra a inclinação veementíssima dos sentidos para o mal. O
número de almas que, sem esforço e sem luta, e quase sem sentir, se convertem,
é muito mais raro e isto porque é infelizmente muito maior o número de homens
escravizados por paixões de toda ordem.
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