Cujo repúdio a
Santa Sé condenou
Não seria completa a
análise deste assunto, se, às reflexões que fizemos, não acrescentássemos
outra. Praticada a título excepcional, a tática que examinamos pode ser
considerada um legítimo e industrioso expediente de caridade. Transformada em
regra geral de ação ela degenera facilmente em respeito humano e em hipocrisia,
atraindo sobre nós o desprezo de nossos adversários. A Santa Sé condenou
expressamente esse erro. Eis o que, a respeito desta tática de perpétuo recuo,
disse o Santo Padre Leão XIII:
"Recuar diante do
inimigo e conservar o silêncio quando de todas as partes se elevam clamores tão
fortes contra a verdade, é atitude de homem sem caráter, ou que duvida da
verdade de sua Fé. Em qualquer caso, tal conduta é vergonhosa e faz injúria a
Deus; ela é incompatível com a salvação de cada um e com a salvação de todos;
ela não traz vantagens senão aos inimigos da Fé; porque nada desperta tanto a
audácia dos maus quanto a fraqueza dos bons.
"Aliás, não há
quem não possa desfraldar aquela força de alma, em que se assenta a própria
virtude dos cristãos; ela basta muitas vezes para desconcertar o adversário e
perturbar seus desígnios. Acresce que os cristãos nasceram para o combate. Ora,
quanto mais a luta for ardente, tanto mais, com o auxílio de Deus, podemos
esperar a vitória: "Tende confiança, eu venci o mundo". (Leão XIII, Encl. "Sapientiae
Christianae", de 10 de Janeiro de 1890).
Pelo contrário, as condescendências excessivas, que tocam por vezes às
raias da inverdade, foram censuradas pelo Espirito Santo: "Aqueles que
dizem ao ímpio "tu és justo", serão amaldiçoados pelo povo e
detestados pelas nações. Aqueles que o repreendem serão louvados e virá sobre
eles a bênção" (Prov., XXIV, 24).
Com efeito, nada é mais apto a criar, de parte a parte, na luta entre
adversários militantes, um ambiente de respeito e até de admiração, do que
convicções profundas e vigorosas, externadas sem arrogância mas com o
sobranceiro desassombro de quem possui a verdade e dela não se envergonha;
declaradas de modo cristalinamente explícito, e defendidas com argumentação
cerrada. Que admiração causavam aos pagãos, que enchiam o Circo Romano e o Coliseu,
as profissões de Fé desassombradas dos mártires, tão opostas ao espírito do
paganismo, que tão fortemente chocavam todo o ambiente, mas que ao mesmo tempo
se apresentavam revestidas do esplendor da lealdade e do prestígio do sangue!
Que admiração tinham os mouros pelos heróicos cruzados, que sabiam lutar como
leões, mansos embora como cordeiros quando tinham diante de si um adversário
ferido ou moribundo. Com que desprezo,
pelo contrário, temos fulminado a propaganda protestante, que procura empregar
contra nós métodos tão em voga em certos círculos da A. C..
"Espiritualistas", "cristãos", até "católicos
livres" se têm eles intitulado, com o intuito preciso de criar os
"terrenos comuns" ambíguos para pescarem em águas turvas. Não
imitemos os métodos que combatemos, não façamos da perpétua retirada, do uso
invariável de termos ambíguos e do hábito constante de ocultar a nossa Fé, uma
norma de conduta, que, em última analise, redundaria em triunfo do respeito
humano.
A uma associação, que
desejava reformar seus estatutos afim de ocultar seu caráter católico, e assim
obter maiores vantagens, escreveu Pio X: "não é leal nem digno ocultar,
cobrindo-a com uma bandeira equivoca, a qualidade de católico, como se o
Catolicismo fosse mercadoria avariada que devesse entrar de contrabando. Que a
União Econômico-Social desfralde portanto corajosamente a bandeira católica e
se atenha firmemente aos estatutos atuais. Poder-se-á obter assim o objetivo da
Federação? Agradeceremos por isso ao Senhor. Será vão nosso desejo? Ficarão ao
menos uniões católicas, que conservarão o espírito de Jesus Cristo e o Senhor
não deixará de as abençoar" (Carta ao Conde Medolago Albani). O mesmo
pensamento repetiu-o o Santo Padre Pio X em carta ao Padre Ciceri, de 20 de
outubro de 1912: "a verdade não quer disfarce, e nossa bandeira deve ser
desfraldada."
Diz a Escritura nada
haver de novo sob o sol. Infelizmente, sobretudo quanto aos erros, esta
afirmação é verdadeira. Os erros se repetem periodicamente. Assim, no
pontificado de Pio X, o presente problema parecia estar muito em evidência. Não
só no que diz respeito ao apostolado de obras – vimos como a União
Econômico-Social atraiu sobre si uma censura a este respeito – mas também no
terreno da ciência se colocava a questão. Muitos cientistas católicos, levados
pelo desejo de evitar o quanto possível atritos com os cientistas naturalistas,
se deixavam iludir pela esperança de que, com certas concessões, seria possível
desenvolver um apostolado frutuoso. Também no terreno político, muitos homens
públicos julgavam que, passando sob silêncio a reivindicação de certos direitos
da Igreja, ou ao menos reivindicando-os de modo muito limitado, obteriam uma
era de paz para o Catolicismo.
O suavíssimo porém
zeloso Pontífice desfez estas ilusões, em termos que bem podem servir à solução
de nosso problema, que em essência é o mesmo. Ouçamo-lo: "ainda mais
grosseiro é o erro dos que, no falso e vão anseio de obter a paz para a Igreja,
dissimulam os interesses e os direitos dela, sacrificando-os a interesses
particulares, diminuindo-os injustamente, e pactuando com o mundo que
"está inteiramente imerso no mal"; tudo isto sob pretexto de
conquistar os fautores de novidades e reconciliá-los com a Igreja. Mas desde
quando pode haver acordo entre a luz e as trevas, entre Cristo e Belial? Sonhos
de espíritos doentes: jamais se cessa de forjar tais quimeras, e jamais teremos
o direito de esperar que se cesse de o fazer enquanto tivermos soldados
covardes, sempre dispostos a fugir atirando de lado suas armas, desde que
avistam o inimigo, a saber, no caso. o perniciosíssimo inimigo de Deus e dos
homens" (Pio X, Encíclica "Communiur, Rerum", 21 de abril de
1909). Evidentemente, concebe Pio X, casos em que “às vezes”, seria justa
alguma condescendência. Por isso, em outro tópico da mesma Encíclica, usando
embora muitas precauções de linguagem, que grifaremos, o Santo Padre
acrescenta: "Não quer isto dizer que não se possa, às vezes, ceder sequer
um pouco de seus direitos: é isto permitido dentro de certa medida,
e a salvação das almas pode exigi-lo".
Em outra Encíclica o
Santo Padre volta a tratar novamente do assunto, dizendo: "é grave o erro
daqueles que pensam bem merecer da Igreja e trabalhar para a salvação eterna
dos homens, permitindo, por uma prudência toda ela mundana, largas concessões a
uma pretensa ciência, com a vã esperança de ganhar, o mais facilmente possível,
o amigo do erro. A verdade é una e indivisível, eternamente a mesma, e não se
submete aos caprichos dos tempos: "Christus heri et hodie, ipse et in
saecula".
"Enganam-se
também, e grandemente, acrescenta o Pontífice, os que, na distribuição de
socorros, principalmente em favor das classes populares, se preocupam no mais
alto ponto com as necessidades materiais, e negligenciam a salvação das almas e
os deveres soberanamente graves da vida cristã. Por vezes mesmo, não se
envergonham de cobrir, como que com um véu, os preceitos mais importantes do
Evangelho, de receio de serem menos ouvidos, ou até abandonados. Sem dúvida,
quando se tratar de esclarecer homens hostis a nossas instituições e
inteiramente afastados de Deus, a prudência poderá autorizar a usar certa
contemporização. "Se vos for necessário cortar feridas, apalpai-as antes
com mão ligeira", diz São Gregório. Mas seria transformar uma habilidade
legítima em uma espécie de prudência carnal, erigir esse procedimento em regra
de conduta constante e comum; e seria também dar pouco valor à graça
divina, que não favorece apenas aos Sacerdotes e ministros, mas todos os fiéis
de Cristo, afim de que nossos atos e nossas palavras comovam as almas. Uma tal
prudência, S. Gregório a desconheceu quer na pregação do Evangelho, quer nas
outras obras admiráveis que realizou para aliviar as misérias humanas. Ele se apegou ao exemplo dos Apóstolos, que diziam, no
dia em que empreenderam percorrer o universo afim de anunciar a Cristo:
"pregamos Jesus crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os
gentios". Mas, se houve tempo em que o socorro da prudência humana pôde
parecer oportuno, foi certamente aquele: porque os espíritos de nenhum modo
estavam preparados para acolher a esta nova doutrina que repugnava tão
vivamente as paixões que por toda a parte reinavam, e chocava de frente a
brilhante civilização dos gregos e romanos.
"Entretanto, os
Apóstolos julgaram essa espécie de prudência incompatível com sua missão,
porque conheciam o decreto divino: "é pela loucura da pregação que aprouve
a Deus salvar os que cressem nele." Esta loucura foi sempre, e ainda é,
"para os que se salvam, isto é, para nós, a força de Deus"; o
escândalo da Cruz forneceu e fornecerá de futuro as armas mais invencíveis; ele
foi outrora e ainda será para nós um sinal de Vitória".
"Mas estas armas,
Veneráveis Irmãos, perderão toda sua força e toda sua utilidade se não forem
manejadas por homens que não vivam interiormente com Cristo, que não forem
impregnadas de uma verdadeira e robusta piedade, que não forem abrasados pelo
zelo da glória de Deus, pelo ardente desejo de dilatar seu reino". (Pio X, Encíclica
"Jucunda Sane", de 12 de março de 1904). Neste último tópico, dá-nos
o Santo Padre a razão profunda de tanta prudência carnal, de tantos expedientes
contemporizadores, em uma palavra, de tanto desejo de não combater: a luta do
apostolado se trava com armas sobrenaturais que só se temperam na forja da vida
interior. Combalida, esquecida, diminuída
esta vida interior pelas múltiplas doutrinas que em outros capítulos
mencionamos, o resultado não deveria tardar a se fazer sentir no terreno da
estrategia apostólica, produzindo os frutos de liberalismo e de naturalismo que
ai estão.
|