QUINTA
PARTE
A
confirmação pelo Novo Testamento
CAPÍTULO
ÚNICO
Importância deste
capítulo
Temos tido ocasião de citar
reiteradamente, no decurso de nossa exposição, as Sagradas Escrituras, mas o
leitor terá notado que as citações do Antigo Testamento têm aparecido com muito
mais freqüência nesta obra, do que as do Novo Testamento.
Este fato decorre do
propósito que formamos, de reservar para análise dos textos do Novo Testamento
um capítulo especial mais amplo, em que cuidaríamos particularmente da posição
em que perante eles se encontram as doutrinas que defendemos.
É óbvia a vantagem de
um estudo especial neste sentido. Fazemos a apologia de doutrinas de luta e de
força, luta pelo bem é certo, e força a serviço da verdade. Mas o romantismo
religioso do século passado desfigurou de tal maneira em muitos ambientes a
verdadeira noção de Catolicismo, que este aparece aos olhos de um grande número
de pessoas, ainda em nossos dias, como uma doutrina muito mais própria "do
meigo Rabí da Galiléia" de que nos falava Renan, do taumaturgo um tanto
rotariano por seu espírito e por suas obras, com que o positivismo pinta
blasfemamente Nosso Senhor, parecendo ao mesmo tempo enaltecê-lo, do que do
Homem Deus que nos apresentam os Santos Evangelhos.
Costuma-se afirmar,
dentro desta ordem de idéias, que o Novo Testamento instituiu um regime tão
suave nas relações entre Deus e o homem, ou entre o homem e o seu próximo, que
todo o sentido de luta e de severidade teria desaparecido da Religião.
Tornar-se-iam assim obsoletas as advertências e ameaças do Antigo Testamento, e
o homem teria ficado emancipado de qualquer obrigação de temor de Deus ou de
luta contra os adversários da Igreja.
Sem contestar que
realmente na lei da graça tenha havido uma efusão muito mais abundante da
misericórdia divina queremos demonstrar que se dá às vezes a este fato
gratíssimo um alcance maior do que na realidade ele tem. Não há, graças a Deus,
católico algum que, por pouco que seja instruído dos Santos Evangelhos não se
lembre do fato narrado por S. Lucas, que exprime de modo admirável o reinado da
misericórdia, mais amplo, mais constante e mais brilhante no Novo Testamento do
que no Antigo. O Salvador fora objeto de uma afronta em uma cidade de Samaria.
E "vendo isto os seus discípulos Tiago e João disseram: Senhor queres tu
que digamos que desça fogo do céu, que os consuma (aos habitantes da cidade)? Ele,
porém, voltando-se para eles, repreendeu-os dizendo: Vós não sabeis de que
espírito sois. O Filho do homem não veio para perder as almas, mas para as
salvar. E foram para outra povoação" (IX, 50-56). Que admirável lição de
benignidade! E com que consoladora e
grande freqüência Nosso Senhor repetiu lições como esta! Tenhamo-las gravadas
bem fundo em nossos corações, mas aí as gravemos de modo tal que reste lugar
para outras lições não menos importantes, do Divino Mestre. Ele pregou
certamente a misericórdia, mas não pregou a impunidade sistemática do mal. No
Santo Evangelho, se Ele nos aparece muitas vezes perdoando, aparece-nos também
mais de uma vez punindo ou ameaçando. Aprendamos com Ele que há circunstâncias
em que é preciso perdoar, e em que seria menos perfeito punir; e também
circunstâncias em que é preciso punir, e seria menos perfeito perdoar. Não
incidamos em um unilateralismo de que o adorável exemplo do Salvador é uma
condenação expressa, já que Ele soube fazer, ora uma, ora outra coisa. Não nos esqueçamos jamais
do memorável fato que S. Lucas narra no texto acima. E também não nos
esqueçamos deste outro, simétrico ao primeiro, e que constitui uma lição de
severidade que se ajusta harmonicamente a da benignidade divina, num todo
perfeito; ouçamos o que de Corozain e Betsaida disse o Senhor, e aprendamos com
Ele, não só a divina arte de perdoar, mas a arte não menos divina de ameaçar e
de punir: "Ai de ti, Corozain, ai de ti, Betsaida, porque se em Tiro ou
Sidônia tivessem sido feitos milagres que se realizaram em vós, há muito tempo
que elas teriam feito penitência em cilícios e em cinza. – Por isso vos digo
que haverá menos rigor para Tiro e Sidônia no dia do juízo, que para vós. E tu,
Cafarnaum, elevar-te-ás porventura até ao céu? Hás de ser abatida ao inferno,
porque se em Sodoma se tivessem feito os milagres que se fizeram em ti, talvez
existisse ainda hoje. Por isso vos digo
que no dia do juízo haverá menos rigor para a terra de Sodoma, que para
ti" (S. Mat., XI, 21-23). Note-se bem: o mesmo Mestre que não quis mandar
o raio sobre o vilarejo de que acima falamos, profetizou para Corozain e
Betsaida desgraças ainda maiores que as de Sodoma! Não arranquemos ao Santo
Evangelho página alguma, e encontremos elemento de edificação e de imitação nas
páginas sombrias como nas luminosas, pois que tanto umas quanto outras são
salutaríssimos dons de Deus.
Se a Misericórdia
ampliou no Novo Testamento a efusão das graças, a justiça, por outro lado,
encontra na rejeição de graças maiores, crimes maiores a punir. Entrelaçadas
intimamente, ambas as virtudes continuam a se apoiar reciprocamente no governo
do mundo por Deus. Não é exato, pois, que no Novo Testamento só haja lugar para
o perdão, e não para o castigo.
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