Com o fervor dos santos
80. Um outro nosso apelo, aqui neste ponto, inspira-se no
fervor que se pode observar sempre na vida dos grandes pregadores e
evangelizadores, que se consagraram ao apostolado. Entre estes, apraz-nos realçar, particularmente,
aqueles que, no decorrer deste Ano Santo, nós tivemos a dita de propor à
veneração dos fiéis. Eles souberam superar muitos obstáculos que se opunham à
evangelização.
De tais obstáculos, que são
também dos nossos tempos, limitar-nos-emos a assinalar a falta de fervor, tanto
mais grave por isso mesmo que provém de dentro, do interior de quem a
experimenta. Essa falta de fervor manifesta-se no cansaço e na
desilusão, no acomodamento e no desinteresse e, sobretudo, na falta de alegria
e de esperança em numerosos evangelizadores. E assim, nós exortamos todos
aqueles que, por qualquer título e em alguma escala, têm a tarefa de
evangelizar, a alimentarem sempre o fervor espiritual.130
Este fervor exige, antes de mais
nada, que nós saibamos banir os álibis que pretendessem opor-se à
evangelização. Os mais insidiosos são certamente aqueles para os quais se
presume encontrar um apoio neste ou naquele ensinamento do Concílio.
É assim que se ouve dizer,
demasiado freqüentemente, sob diversas formas: impor uma verdade, ainda que
seja a verdade do Evangelho, impor um caminho, ainda que seja o da salvação,
não pode ser senão uma violência à liberdade religiosa. De resto,
acrescenta-se ainda: Para que anunciar o Evangelho, uma vez que toda a gente é
salva pela retidão do coração? E sabe-se bem, além disso, que o mundo e a
história estáo cheios de sementes da Palavra. Não será, pois, uma ilusão o
pretender levar o Evangelho aonde ele já se encontra, nestas sementes que o
próprio Senhor aí lançou?
Quem quer que se dê ao trabalho de aprofundar, nos mesmos documentos
conciliares, os problemas em base aos quais esses álibis são formulados, de
maneira demasiado superficial, encontrará uma visão totalmente diversa da
realidade.
É claro que seria certamente um erro impor qualquer coisa à consciência dos
nossos irmãos. Mas propor a essa consciência a verdade evangélica e a salvação
em Jesus Cristo, com absoluta clareza e com todo o respeito pelas opções livres
que essa consciência fará, e isso, sem pressões coercitivas, sem persuações desonestas
e sem aliciá-la com estímulos menos retos,131 longe de ser um atentado
à liberdade religiosa, é uma homenagem a essa liberdade, à qual é proporcionado
o escolher uma via que mesmo os não-crentes reputam nobre e exaltante. Será
então um crime contra a liberdade de outrem o proclamar com alegria uma Boa
Nova que se recebeu primeiro, pela misericórdia do Senhor? 132 Ou por
que, então, só a mentira e o erro, a degradação e a pornografia, teriam o
direito de serem propostos e com insistência, infelizmente, pela propaganda
destrutiva dos "mass media", pela tolerância das legislações e pelo
acanhamento dos bons e pelo atrevimento dos maus? Esta maneira respeitosa de
propor Cristo e o seu reino, mais do que um direito, é um dever do evangelizador.
E é também um direito dos homens seus irmãos o receber dele o anúncio da Boa
Nova da salvação. Esta salvação, Deus pode realizá-la em quem ele quer por vias
extraordinárias que somente ele conhece.133 E entretanto, se o seu
Filho veio, foi precisamente para nos revelar, pela sua palavra e pela sua
vida, os caminhos ordinários da salvação. E ele ordenou-nos transmitir aos
outros essa revelação, com a sua própria autoridade.
Sendo assim, não deixaria de ter a sua utilidade que cada cristão e cada
evangelizador aprofundasse na oração este pensamento: os homens poderão
salvar-se por outras vias, graças à misericórdia de Deus, se nós não lhes
anunciarmos o Evangelho; mas nós, poder-nos-emos salvar se, por negligência,
por medo ou por vergonha, aquilo que São Paulo chamava exatamente
"envergonhar-se do Evangelho",134 ou por se seguirem idéias
falsas, nos omitirmos de o anunciar? Isso seria, com efeito, trair o apelo de
Deus que, pela voz dos ministros do Evangelho, quer fazer germinar a semente; e
dependerá de nós que essa semente venha a tornar-se uma árvore e a produzir
todo o seu fruto.
Conservemos o fervor do espírito, portanto; conservemos a suave e
reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com
lágrimas! Que isto constitua para nós, como para João Batista, para Pedro e
para Paulo, para os outros apóstolos e para uma multidão de admiráveis
evangelizadores no decurso da história da Igreja, um impulso interior que
ninguém nem nada possam extinguir. Que isto constitua, ainda, a grande alegria
das nossas vidas consagradas. E que o mundo do nosso tempo que procura, ora na
angústia, ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de
evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de
ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu
primeiro em si a alegria de Cristo, e são aqueles que aceitaram arriscar a sua
própria vida para que o reino seja anunciado e a Igreja seja implantada no meio
do mundo.
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