- 271 -
3. OS SURDOS-MUDOS
Um apóstolo da Palavra e do Catecismo não podia
permanecer indiferente ao drama de quem não tem o dom da palavra e não pode se comunicar,
com os outros, por meio deste “vínculo maravilhoso”.
O surdo-mudo está entre os mais pobres e infelizes dentre
os homens: órfão na família, solitário no meio do povo, excluído da piedade
humana, um exilado na própria pátria. A fé a a caridade impõem não só o dever
de assisti-lo, mas de readmiti-lo na sociedade civil e eclesial, com uma
instrução que o ajude a se comunicar com os homens e, através da mediação
humana, com Deus. Os sacerdotes devem ser “língua de sua mudez e ouvidos de sua
surdez”. Igreja e sociedade devem lazer “falantes” ou surdo-mudos.
O apóstolo do catecismo, isto é, da comunicação da fé,
através de uma linguagem compreensível e assimilável, faz-se apóstolo dos
surdos-mudos, para restabelecer a essencial comunicação humana da linguagem, e
apóstolo dos migrantes, para restabelecer a comunicação do homem, isolado pela
migração, com a sociedade e a Igreja. Uma única inspiração o guia: “Ide e
ensinai”, trabalha por um único objetivo: a comunhão dos homens, entre si e com
Deus.
“Iniciou-se uma família de surdas-mudas.”
Era véspera do dia em que
eu devia vir, para tomar posse dessta querida diocese e despedir-me
definitivamente da minha doce pátria. Como poderia esquecer-me das pobres
surdas-mudas que tinham sido, por vários anos, o objeto das minhas solicitudes
e do meu sagrado ministério? De fato, ia vê-las para exortá-las, pela última
vez, para recomendá-las, pessoalmente, à Divina Bondade e dar-lhes a minha
bênção. Não me é possível descrever-vos as cenas daquele adeus. O surdo-mudo
instruído sente vivíssima - 272 -
gratidão,
imensa, imperecível por todos aqueles que usam de caridade para com elas.
Aquelas boas filhas estavam habituadas em considerar-me seu guia espiritual,
seu catequista, o pai de suas almas, um dos seus protetores, e depois de ter-me
expressado seus sentimentos, delicada. mente sublimes, concluíram sua mensagem
assim: somos oprimidas por uma tristeza mortal, por causa da vossa partida, mas
ela se mudará logo em vivíssima alegria, se nos prometeis favorecer em vossa
diocese a instrução para as nossas irmãs de infortúnio. Prome. ti-lhes e parti
comovido, decidido a trabalhar com todas as minhas forças, para manter a
palavra dada.
Coloquei esta obra sob a
proteção de Maria Santíssima e, no sagrado dia da sua natividade em 1880,
dirigi, como sabeis, ao clero e ao povo da cidade e diocese, um apelo, para que
viesse alguma ajuda, da parte dos filhos. A palavra do pastor, abençoada por
Deus, surtiu ao menos em parte, o efeito desejado. Um santo homem ao morrer, impunha
à sua mulher, sua única herdeira, de consignar-me uma soma para a execução de
várias suas benéficas disposições, entre as quais, não última, aquela dos
surdos-mudos. Assim me foi possível a compra desta casa e cobrir as não poucas
despesas, para implantar semelhante instituto... Portanto, abençoada seja a suave memória do piedoso e popular José
Rossetti!
Foram logo por mim
chamadas aqui, das várias partes da diocese, as surdas-mudas, já adultas, não mais capazes de instrução completa.
Procurou-se ensinar-lhes, ao menos as coisas necessárias, para poder admiti-Ias
aos Santos Sacramentos, reenviá-las, depois de alguns meses, ~s suas
respectivas casas, se com verdadeiro fruto não ousarei afirmá-lo, Deus terá em
conta o nosso e seu bom desejo.
Aqui se iniciou uma família de surdas-mudas que concluiram
a instrução, e não sabem, muitas vezes, onde se apoiarem; uma espécie de
patronato. Elas vivem juntas, são meio religiosas, rezando e ganhando para seu
sustento, especialmente com trabalhos para a Igreja.
Aqui se começou a instrução regular das
meninas, capazes de aprender, cujo aproveitamento, ó senhores, sereis agora
testemunhas. Este seu aproveitamento que em parte, já conheço, se de um lado me
alegra, de outro me faz sangrar o coração, pensando que na vastíssima diocese
são aproximadamente duzentos os surdos-mudos, como resulta da estatística que
mandei fazer, a maior parte dos quais cresceram, sem preparação adequada.
Portanto, concluirei,
expressando minha gratidão e admiração para com estas boas religiosas, na
amplidão de sua caridade, estariam dispostas a colhê-las todas, e renovando os
anseios de que entre as inúmeras pias instituições, a dos surdos-mudos possa
prosperar de tal forma, que Placência não tenha mais a invejar, tamém nisto,
tantas outras cidades italianas e - 273 -
estrangeiras,
onde os surdos-mudos de ambos os sexos, felizmente, já são educados e
restituídos às famílias, como membros civilizados de fato, como cidadãos úteis
à sociedade, como filhos devotados à Igreja, como fiéis adoradores de Deus. 1
“Não existe
infelicidade comparável a do surdo-mudo.”
Não existe sobre a terra
infelicidade comparável a do pobre surdo-mudo. Provido daquelas faculdades, das
quais foi generosa, para todo homem a Divina Providência, o surdo-mudo é desprovido
daquele órgão maravilhoso, pelo qual descem n’alma as suaves harmonias,
desenvolvem-se os afetos mais caros da família, nutrem os sentimentos mais
elevados da fé e se abrem as portas daquele santuário, onde a consciência
domina soberana.
A palavra, esta potência criada com o pensamento e reveladora de
ideais puros, este vínculo misterioso que conjuga a natureza moral à física, que une a inteligência à
inteligência e coração a coração, vai repercutir no seu ouvido, mas sem efeito
como o dardo lançado no mármore.
Portanto, este inocente
filho da desventura cresce, em meio àsociedade, mas quase estranho à mesma. O
tesouro do conhecimento comum, que é dado a todos poderem enriquecer-se, para
ele fechado; cala para ele a experiência dos séculos passados, e o patrimônio
de seus conhecimentos é limitado e aqueles poucos, do qual as próprias
necessidades, a própria reflexão, a experiência própria puderam ensinar-lhes,
nisto são semelhantes aos selvagens da floresta, que nada compreendem de quanto
vêem ao seu redor.
Antes, refletindo bem, se
a condição do surdo-mudo se iguala plenamente a do selvagem a respeito da
ignorância da inteligência, ela lhe é muito inferior, a respeito das amarguras
do coração.
Disseram que a fome da
verdade não é menos exigente que a do pão quotidiano, e assim o é
verdadeiramente. Prova disto é a criança dotada da palavra, que não acaba mais
de questionar, pra sobre uma coisa, ora sobre outra, e se irrita e tumultua e
aliara, se não for imediatamente satisfeita.
Portanto, qual não deve
ser o tormento do surdo-mudo, que sente dentro de si a mesma fome do saber e se
sente desprovido até do benefício de interrogar! Vê os outros conversando entre
si, e conforme suas conversas, retratar na face riso, choro, admiração e ele
não pode, de nenhum modo, - 274 -
descobrir-lhes
as causas. Arde no desejo de compreender e de ser compreendido e não pode nem
mesmo tornar conhecido seu desejo. Talvez por isso também se encontram em
estado de permanente amargura, de violência dolorosa, e ai, que dolorosa! O
vós, que gostais de estar freqüente mente em doces colóquios com vossos
semelhantes, imaginai que seria para vós o dia em que fôsseis, para sempre,
condenados a um férreo silêncio! Todavia esta não é senão uma das penas a que
está sujeito o surdo-mudo no decorrer de sua vida mortal. 2
“Um
solitário em meio aos homens.”
Se para todos, o
surdo-mudo, sem instrução, é um ser racional que não raciocina, um órfão
isolado da famfiia, um solitário em meio aos homens, um selvagem na sociedade civil,
na Igreja de Deus, para nós, é sobretudo, uma alma em jejum do pão da vida, um
infiel quanto à fé atual, um ignorante de todas as verdades reveladas, também
das mais elementares, a serem conhecidas como meios necessários. Sob este ponto
de vista, a necessidade do surdo-mudo torna-se extrema, e a relativa
providência assume para nós o caráter não de simples obra de beneficência e de
humanidade, mas de religião e de justiça.
O surdo-mudo não tem nenhum conhecimento de Deus, nem das coisas de
Deus! Se, de fato, não chegam a este conhecimento as crianças dotadas da
faculdade da audição, onde falta a instrução oportuna: se infelizmente vemos
freqüentemente crianças que descuidando do estudo catequético, não conhecem as
principais verdades da religião, também depois de terem ouvido falar delas,
tantas vezes, como acreditar que possa chegar a conhecê-las o surdo-mudo,
destituído de meios, isolado do seio da família e da sociedade, com a noite
profunda que reina na sua inteligência e com o silêncio sepulcral que o
circunda? (...).
Para ele, o mundo material é um mistério, como também, um mistério a
vida do homem. De fato, o terrível assalto da dor, as lágrimas da virtude, a
hipocrisia do vício, os preceitos do dever, o poder do arrependimento, a
esperança do perdão, a sublimidade dos afetos, o sacrifício das paixões, o
martírio da pobreza, os contrastes das falsas amizades, as injustas
perseguições não se explicam sem Deus. E o que seria para nós o dia do último
adeus, se a luz da imortalidade não iluminasse o sepulcro? Não, não existe
senão a religião para confortar o homem nas duríssimas provas. - 275 -
Mas a
religião é revelação e a revelação é palavra; pois a inteligência divina não
pode se comunicar com a inteligência humana, senão por meio da palavra, isto é,
com a mais pura e a menos material das formas análogas à condição do homem. E
nós ouvimos esta palavra, que chama bem-aventurados os pobres, os perseguidos,
aqueles que choram, assegurando-lhes o reino dos céus, e nossa alma se conforta em Deus, seu Senhor. Nós
escutamos esta palavra em cada circunstância, em todo o tempo, em cada lugar,
até no leito da agonia e o nosso coração se abre à esperança das alegrias
futuras. Mas para o mísero surdo-mudo não é assim. Ele não pode, como nós, unir
o presente ao futuro, o visível ao ao invísivel, a natureza à graça. Ele se
encontra exposto a contínuas ilusões, desprovido de todo conforto, condenado a
viver neste exílio, sem direção, sem esperança, sem amor. Ressentimento, ódio,
melancolia, abandono, choro, rancor, são a sua porção, aqui na terra.
Ele é
condenado por quem, podendo fazê-lo instruir-se religiosamente, não o faz por
indolência, ou por mal entendida economia. 3
“A
sociedade não pode recusar-lhe o benefício da instrução.”
Enquanto,
por lei, quer-se obrigatória a instrução do povo, a fim de que a luz da verdade
se difunda e penetre também na oficina do pobre e do artesão; e enquanto se
exige tanto, para tutelar o direito que cada um tem, de gozar de todos aqueles
preciosos benefícios, que são conseguidos pelas condições sociais, como poderia
ser excluído o surdo-mudo? Não entra, ele também, na categoria dos homens e dos
cidadãos? Antes, não tem ele maior direito à compaixão fraterna e à atenção social, exatamente porque a
desventura o atingiu mais cruelmente? Não, nem a sociedade pode recusar-lhe o
benefício da instrução, tendo a Providência inspirado à inteligência do homem,
os meios aptos para dissipar-lhe a ignorância; nem deve recusar-lhe, tendo ela
grave obrigação de tornar os seus membros aptos a cooperar para o bem comum.
Portanto é débito dos Municípios, das Províncias e de quem quer que presida
órgãos públicos, de procurar, com toda a urgência educação do surdo-mudo,
socorrendo-o, não com uma estéril compaixão, mas com amor operoso e eficaz, que
sirva, para restituir-lhe os privilégios de homem, fazendo-o entrar na
sociedade civil, tornando-o útil a
religião e a pátria. 4 - 276 -
“Uma história piedosa.”
A história piedosa destes jovens surdos-mudos muitas vezes torna-me
à mente, foi no ano de 1879. Naquele rigidíssimo inverno, perdido em meio aos
campos de Carpaneto e da neve, quase morto pelo frio, foi encontrado um jovem
surdo-mudo. Levado à cidade, depois dos cuidados com os seus pés e as mãos
geladas, não sabendo onde o colocar, a autoridade colocou-o, sabeis onde? na
prisão, onde permaneceu por alguns meses. Um magistrado de então, lendo a minha
pastoral sobre os surdos-mudos, veio logo relatar-me aquele caso e pedir-me se
pudesse, providenciar. — Sim, senhor, respondi, levá-lo-ei comigo para casa e
comigo conservei-o por aigum tempo. Ele não sabia nada, nada compreendia, tinha
uma certa idade e pouco suscetível à instrução, tirou pouco proveito do pouco
tempo que eu podia dispor para civilizá-lo. Por quanta investigação tenha sido
feita, nada; não se pode saber nada. Pobre mãe que deu à luz a este infeliz,
que por certos indícios não me parecia de baixa origem, pobre mãe que talvez
morria pressentindo a infelicidade e o miserável fim do filho e levava consigo
para a sepultura uma dor mais cruel que a morte. Vós que sois mães, me
compreendeis. Era italiano? era estrangeiro? Que mistério se escondia naquele
fato! pobrezinho, se tivesse sido instruído, se tivesse podido falar: uma única
palavra teria revelado, quem sabe aquele mistério de iniquidade, mas morreu,
sem poder proferí-la.
“Não se ama
sem conhecer.”
Do ponto de vista
religioso, o surdo-mudo não instruído é desprovido de todo conforto. O homem é
religioso, como é perfectível, e estes dois grandes conceitos procedem com
admirável acordo e um confirma o outro. Ë o que a razão manifesta, o homem se
torna mais religioso, quanto mais se aperfeiçoa, e tanto mais se aperfeiçoa,
quanto mais se torna religioso (...).
Eis uma família reunida
no santuário doméstico. A mãe oferece ao Senhor dos Céus os seus filhos, o pai
os abençoa: os filhos dão graças ao Altíssimo, de quem bem reconhecem a
Providência tutelar e comparam-na aos seus pais terrenos. Um surdo-mudo assiste
à cena, o seu coração não bate por afeto, porque sua mente não penetra no
mistério. Eis uma multidão reunida no templo. Todas as almas estão recolhidas,
todos os espíritos estão absorvidos em um mesmo pensamento e o concerto dos
cantos revela o dos - 277 -
corações
(...). Todos os corações compreendem
os próprios destinos: todos ali se preparam em comum triunfo, todos se dirigem
igualmente para o centro eterno do bem. A humanidade se alegra, mas o
surdo-mudo, não instruído, está presente com indiferença ao espetáculo de amor,
como assiste friamente ao espetáculo da vida. Sim, para sentir atraente o
conforto da religião, é preciso amar, não se ama, sem conhecer plenamente o objetivo que atrai (...).
Portanto, que raio de luz
brilhará no espírito do surdo-mudo não instruído, para dissipar-lhe as trevas
da ignorância, para desvendar-lhe o conforto da virtude, para encaminhá-lo às
consoladoras esperanças do futuro? A instrução e os novos sistemas de educação
dão, exatamente, ao surdo-mudo a palavra, ele lê nos lábios dos outros e
responde, como pode responder um surdo-mudo e conforme as disposições orgânicas
particulares, mas responde e a redenção do surdo-mudo profetizada no evangelho
se cumpre: os surdos ouvem, os mudos falam. 6
“É necessário que os outros pensem
por eles”.
Depois de tudo isto, quem
de vós não vê a necessidade que estes infelizes têm de serem socorridos? Também
no evangelho existem tratados eloqüentíssimos sobre isto.
Os leprosos, os
aleijados, os fracos, os mesmos cegos conhecem a própria desventura e vão em busca
do Divino-Médico, ou, se não podem ir, quando Ele lhes passa perto, podem
gritar: Jesus, Filho de Davi, tende piedade de nós. Ao contrário, nenhum dos
surdos-mudos encontra a ajuda, por si mesmo para a própria desgraça, nenhum
encontra por si mesmo, o caminho, para ir ao Salvador, e por isso necessitam
que os outros pensem por eles e, piedosamente, os guiem.
Mas mesmo conduzidos a
Jesus, eles não O conhecem, não podem dirigir-lhe nenhuma oração. Daí que Jesus
Cristo, enquanto a todos os que a Ele recorriam, pedia uma súplica, uma
confissão de sua miséria, um ato de fé, nunca pediu nada disto aos
surdos-mudos, querendo todavia, que por eles rezassem e reavivassem a fé,
aqueles que os apresentavam. 7
“Língua de sua mudez, ouvido de sua
surdez.”
Uma última palavra a vós, os veneráveis sacerdotes,
nossos caríssimos cooperadores na vinha de Deus. Certamente nenhum de vós - 278 -
deixará crescer, em sua paróquia,
um menino ou uma menina, atingidos pela surdez, ou pela mudez, sem procurar
todos os meios de torná-los, com instrução religiosa, capazes de receber os
santos sacramentos da Igreja, porque nenhum de vós quererá trair o próprio
ministério, nem diante da Igreja e de Deus tornar-se culpado pela perda
daquelas almas, recomendadas ao seu zelo. Não podeis ocupar-vos diretamente?
Podeis, porém, e deveis ocupar-vos indiretamente, até que não estejais
moralmente seguros da salvação deles.
Procurai, portanto, estes
desgraçados nas famílias, onde muitas vezes são conservados escondidos, e
notificai-os a esta cúria, valendo-vos do formulário anexo. Falai aos pais do
dever de consciência que têm de proporcionar-lhes instrução. Levai ao
conhecimento deles a existência do referido instituto (...).
Enfim, considerai-vos
aquilo que sois, os destinados pela divina Providência, conforme a frase dos
Livros Santos, a tornarem-se língua de sua mudez, ouvido de sua surdez.
Veneráveis irmãos, este é
um novo apostolado, que o céu vos apresenta (...).
O surdo-mudo não é
abandonado pela Providência à sua deplorável privação. Ela coloca-o nos braços
dos fiéis, confia-o às mais piedosas entranhas, e, cobrindo-o com o precioso
manto da filiação divina, diz a todos nós: providenciando a instrução religiosa
desta alma, que me é tão cara, vós demonstrais a grandeza do amor que me
tendes.8
“Não vivem
mais estranhos à sociedade e à família.”
O surdo-mudo pareceu-me
sempre a mais infeliz das criaturas. De fato o órgão da audição não é apenas o
instrumento pelo qual desce n’alma um som efêmero, mas é o misterioso veículo daquela
palavra que partiu do céu, para conduzir a humanidade ao seu eterno fim. Não
existe vida moral, (para o indivíduo, como para a nação) sem uma língua. O
pensamento humano dobra-se sobre si mesmo, através da reflexão, que por obra de
sinais, determina e circunscreve as idéias. Mas o murmúrio interior, através do
qual o espírito conversa consigo mesmo, tem necessidade da palavra exterior e
da sociedade humana. Portanto, a palavra é para cada homem a fonte principal da
verdade e da ciência, para as nações a corrente de ouro, que une as
inteligências e os corações, para a humanidade, o vínculo maravilhoso que a
liga ao céu.
O que é o homem sem a palavra? Não existe coração, por mais - 279 -
insensível que seja, que possa resistir
ao espetáculo do surdo-mudo abandonado a si mesmo. Ele vive como nós, em meio
ao barulho do mundo, mas não houve a si mesmo, não ouve aos outros. Um eterno
silêncio o circunda. Aquele ouvido fechado para sempre à suave harmonia da
noite, aqueles olhos que se volvem encantados sobre as maravilhas da natureza,
sensível, parecem buscar ávidos outros mundos, outra pátria, outras criaturas e
o supremo Artífice do universo; aqueles lábios nos quais pousa o silêncio nos
adverte sobre aquela tétrica monotonia, que lhe pesa n’alma como a eternidade
de uma pena. Mais infeliz dos infelizes, pobre surdo-mudo, não será capaz de
suscitar uma palpitação de amor quem te observa?
Eu vi este filho da
desventura deixado na maioria das vezes, a vegetar sobre a terra, e amplos,
muito amplos, nasceram em mim os desejos. Oh, por que, perguntei-me freqüentemente, a Providência não
proporcionou o necessário para regenerar todos os surdos-rnudos ainda não
instruídos, na Itália? Surja ao menos um humilde asilo onde a Providência me
destinou a ser pai de um povo culto e gentil, e seja aquele asilo para as
pobres surdas-mudas, as quais expostas a maiores perigos, têm necessidade do
mais imediato socorro. Os surdos ouçam, os mudos falem e seja também Placência
de perto espectadora deste novo prodígio da caridade cristã. Falei, e vós
senhores, podeis nesta manhã ter uma pequena amostra. Verdadeiramente pequena,
pois não é necessário esquecer que a obra é ainda nova: conta apenas, poucos
anos de vida.
Todavia, tenho a consolação
de poder vos anunciar que 60, além das instruídas regularmente, são até o
momento as surdas-mudas que saíram civilizadas, deste recinto. Eu disse
civilizadas porque, seja pela idade muito avançada de umas, seja pela inaptidão
para aprender de outras, fomos constrangidos a restitui-las, depois de alguns
meses, às respectivas famílias, compensados por ter procurado despertar em seus
corações os sentimentos cristãos e civis. Sem dúvida, Deus terá levado em
consideração o nosso esforço e o seu bom desejo.
A nossa pequena família
se compõem de uma outra classe que é das meninas surdas-mudas, que sem pai e
nem mãe, ou também sem apoio e conforto, ou chamadas a uma espécie de vida
religiosa, porém sempre livres para saírem, querem passar aqui os seus dias.
Atualmente são oito. Vestem um hábito especial e vivem retiradas, no
recolhimento, na oração, e no trabalho.
Vem depois uma terceira
classe, que chama toda vossa atenção, é senhores, e é precisamente o grupo de
meninas que agora estão sendo
apresentadas. Esta é composta das surdas-mudas que são capazes de uma instrução
regular. Algumas entraram há poucos dias, e por isso ainda - 280 -
incapazes de pronunciar qualquer
palavra, apresentam-se em toda sua miséria e na sua índole quase selvagem. As
demais esperam impacientemente poder mostrar-vos que também elas têm uma mente
e um coração, que são abertas à luz da verdade e dos afetos mais santos. que
vos compreendem e que são capazes de se fazerem entender. O senhores, tal é o
fruto da educação que elas recebem neste lugar. Elas não vivem mais, como
estranhas à sociedade e à família, pelo contrário, são de grande proveito e
conforto, tanto a uma como a outra. 9
“Fazei-as
falar.”
Ó senhores, é sempre uma
cena maravilhosa e comovente, vê-las sedentas e ansiosas penderem dos lábios de
suas pacientes e caridosas educadoras, por longas horas, e muitas vezes acolher
suas explicações religiosas, com lágrimas nos olhos, com alegria na face,
entusiasmo e reconhecimento no coração depois, tomarem-se reflexivas, caírem em
si, amarem-se, ajudarem-se reciprocamente, traduzir na vida a santidade do
Evangelho e nos atos, a fé que as sustenta e conforta. Freqüentemente, tenho
ouvido pais e parentes repetirem que a sua surda-muda, agora falante, é a
honra, a consolação e o apoio moral da sua casa, e as mesmas surdas-mudas
escrevendo-me repetem muitas vezes, que bendizem o Instituto, particularmente
por tê-las feito falar, porque com tal meio encontram-se reintegradas, nas
famílias e na sociedade e são mais respeitadas, o seu trabalho é mais
valorizado e melhor pago, e portanto gozam não só de uma vida mais tranqüila,
mas também menos incômoda. 10
“O
Instituto das surdas-mudas fundado por mim.”
O Instituto das
surdas-mudas, existente nesta cidade, foi fundado por mim, há vinte e dois
anos.
Ele possui atualmente a
casa habitada pelas surdas-mudas e um sítio com ampla e belíssima casa, onde as
pobres infelizes vão restabelecer a saúde, durante alguns meses do ano.
Para manutenção das
surdas-mudas, em parte providencio eu mesmo, com mil e quinhentas liras por
ano, que serão continuadas também depois da minha morte; a este subsídio,
deve-se acrescentar mil liras que se recebe das pensões, e outras tantas que se
obtêm com trabalho manual; para o restante - 281 -
está
encarregada a providência que tudo vê e tudo provê, e que tem visto e provido
suficientemente.
As despesas anuais
oscilam entre onze a doze mil liras.
Atualmente, as
surdas-mudas são cinqüenta, entre adultas e crianças. As adultas em parte fazem
frente, com o trabalho, às despesas de sua manutenção.
As meninas são instruídas
por mestras especializadas escolhidas entre as Filhas de Sant’Ana (às quais é
confiada a direcão do Instituto), na religião, na leitura, na escrita, na
matemática, nos trabalhos femininos, e em tudo o que é necessário para o bom
governo de uma família e para ganhar, se ocorrer, o pão com o trabalho.
Em uma palavra, é tarefa
principal das mestras dar às surdas-mudas aquela bagagem de conhecimentos exigidos
pela lei, na instrução obrigatória.
Sobre o aproveitamento
que estas infelizes conseguem, é prova pvidente, o sucesso de todas aquelas,
que concluindo o curso de instrução, deixaram o Instituto, para se dedicarem às
suas famílias, ou para prestar serviço em casas de outrem.
Tenho ainda o prazer de
vos anunciar que dentro de poucos meses, verei realizado um de meus mais
ardentes desejos, ou seja, a abertura do Instituto para os meninos surdos-mudos
na nossa diocese e província.
Estou convencido que a
nova instituição encontrará por parte de todos, conveniente apoio; certo não
lhe faltará também o de Deus.11
|