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a) AS DIMENSÕES E AS CAUSAS
“Eram
migrantes.”
Há vários anos, em Milão, fui
expectador de uma cena que deixou em meu espírito, uma impressão de profunda
tristeza.
Passando pela estação, vi a vasta sala, os
pórticos laterais e a praça adjacente invadidos por trezentos ou quatrocentos
indivíduos, vestidos pobremente, divididos em diversos grupos. Em suas faces
bronzeadas pelo sol, sulcadas por rugas precoces que a privação - 356 -
costuma
imprimir, transparecia o tumulto dos afetos que agitavam seus corações, naquele
momento. Eram velhos curvados pela
idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres que levavam após si
ou carregavam ao colo suas crianças, pequenos e jovens todos irmanados por um
único pensamento, todos orientados para uma meta comum.
Eram migrantes.
Pertenciam às várias províncias da Alta Itália e esperavam, com ansiedade que o
trem os levasse às margens do Mediterrâneo e de lá para as longínquas Américas,
onde esperavam encontrar a fortuna, menos desfavorável, e a terra menos ingrata
aos seus suores.
Aqueles pobrezinhos
partiam. Alguns chamados por parentes que os haviam precedido no êxodo
voluntário, outros sem saber precisamente para onde seriam levados, atraídos
por aquele instinto forte que faz os pássaros migrarem. Iam para a América,
onde ouviam repetir, tantas vezes que havia trabalho, bem pago, para quem
tivesse braços vigorosos e boa vontade.
Eles, em lágrimas, tinham
dito adeus ao povoado natal, ao qual os ligava tantas lembranças agradáveis;
mas, sem saudade dispunham-se a abandonar a pátria. Pois eles não a conheciam,
senão sob duas formas odiosas: o alistamento e o cobrador de impostos. Para o
deserdado, a pátria é a terra que lhe dá o pão: lá longe, longe, esperavam
encontrar o pão, menos escasso, menos suado.
Parti comovido. Uma onda de pensamentos tristes me amarguravam o
coração. Quem sabe que cúmulo de desgraças e de privações, faz parecer-lhes
doce, um passo tão doloroso!... Quantos
desenganas, quantas novas dores lhes prepara o futuro incerto! Quantos sairão
vitoriosos na luta pela existência? Quantos sucumbirão, entre os tumultos das
cidades ou no silêncio das planícies inabitadas? quantos embora encontrando o
pão do corpo, sentirão a falta do pão da alma, não menos necessário que o
primeiro, e perderão numa vida toda material, a fé de seus pais?
Desde aquele dia, a mente
me transportava freqüentemente para aqueles infelizes, e aquela cena relembra
sempre outra nao menos desoladora, não presenciada, mas percebida nas cartas
dos amigos e no relacionamento com os viajantes. Eu os vejo desembarcados em
terra estrangeira, no meio de um povo que fala uma língua que eles não entendem, vítimas fáceis
da especulação desumana. Vejo-os banhar com seus suores e com suas lágrimas, um
solo ingrato, uma terra que exala miasmas pestilentos; arrebentados pelas
fadigas, consumidos pela febre, a suspirar em vão, pelo céu da pátria distante
e pela antiga miséria do casebre nativo e finalmente sucumbir, sem que a
saudade de seus caros os console, sem que a palavra da fé lhes mostre o prêmio,
que Deus prometeu aos - 357 -
bons e
aos desventurados. E aqueles que triunfam na rude luta pela existência, ei-los
lá do seu isolamento, esquecer completamente toda noção sobrenatural, todo
preceito da moral cristã e perdem cada dia mais o sentimento religioso, não
alimentado pelas práticas de piedade e deixam que os instintos brutais tomem o
lugar das aspirações mais elevadas.
Diante de tão lamentável
estado de coisas, eu me faço constantemente a pergunta: como remediar isto? E
todas as vezes que me acontece ler nos jornais, qualquer circular do governo
que coloca as autoridades e o público de sobreaviso, contra as artes de certos
especuladores, os quais fazem verdadeiros saques de escravos brancos, para
empurrá-los, cegos instrumentos de ávidas coças, longe da terra natal, com a
ilusão de fáceis e abundantes lucros; quando, das cartas dos amigos ou das
relações dos viajantes observo que os párias migrantes são os italianos, que os
trabalhos mais vis, se é que possa existir vileza no trabalho, são feitos por
eles, que os mais abandonados, e portanto os menos respeitados, são os nossos
patriotas, que milhares e milhares de nossos irmãos vivem, quase sem defesa da
pátria distante, objeto de prepoocias muitas vezes impunes, sem o conforto de
uma palavra amiga, confesso-o. a chama da vergonha sobe-me ao rosto.
Sinto-me humilhado na
minha qualidade de sacerdote e de italiano, e me pergunto de novo: como
ajudá-los?
Também, há poucos dias,
um distinto viajante me trazia a saudação de várias famílias dos montes
placentinos, acampados às margens do Orenoco: Diga ao nosso Bispo que lembramos
sempre e de seus conselhos, que reze por nós e que nos mande um padre, porque
aqui, se vive e se morre como animais...
Aquela saudação dos
filhos distantes soara para mim como uma reprimenda...
1
“Um dos
fatos mais importantes da vida moderna italiana.”
Um dos fatos mais importantes
da vida moderna italiana é a sua migração. Importante pelo número, pelas
questões sociais que envolve, pelo mal estar econômico que estimula. Segundo os
cálculos estatísticos, os italianos migrantes que vivem atualmente nas
Repúblicas Americanas ultrapassam o número de dois milhões. Mais de um milhão
de Repúblicas do Sul, quatrocentos mil aproximadamente no Brasil, e o resto nas
vastas partes da América e sobretudo ao Norte. Somente a cidade de Nova Iorque
conta 85 mil. - 358 -
No decênio 1880-1890
ultrapassaram os confins do Reino,
dois milhões de habitantes — um
milhão pela migração temporária, verdadeiro fluxo e refluxo de pessoas que
oferece aos trabalhos da Europa, a mão-de-obra inteligente e zelosa dos nossos
operários, que trazem para a pátria honra e dinheiro; e um milhão de migração
permanente — ou seja, gente que vai
além-oceano, com a esperan ça, quase sempre frustrada, de retornar e se espalha
nas jovens Repúblicas Americanas, ao Sul e ao Norte, nas cidades populosas, nos
pampas desertos e nas florestas virgens, levando em toda parte uma atividade,
sempre apreciada e considerada (...).
Estas cifras não têm
necessidade de longo comentário. Elas falam clara e rigorosamente, que no
biênio 87-88 saiu maior número de cidadãos do Reino da Itália, que da França,
dos Países Baixos, da Espanha, de Portugal, da Áustria, da Bélgica, da
Dinamarca, da Suíça juntos. Dizem que a nossa migração é o quádruplo da Rússia, o triplo da Alemanha que tem uma notável migração em alguns milhões, superior à do Reino
Unido, que tem colônias florescentes e negócios em todas as partes do mundo. 2
“Um
fenômeno que tem todas as características de um
fato
permanente.”
As cifras expostas são
enormes, mas o fenômeno migratório parece não ter chegado ao seu ápice, pois,
apesar das dificuldades colocadas
pela lei vigente, quase há dois anos, limita o traballio dos agentes de
migração; apesar dos desenganos e dos gritos de dor, que, de tanto em tanto,
atravessando o Atlântico, nos fazem estremecer e corar, enfim, malgrado as
proibições governatívas, o êxodo doloroso continua. O Senhores, acontece que a
migraçao italiana, que foi e continua sendo aumentada, especialmente pelas
nossas tristes condições agrárias, que foi e é estimulada, além das medidas,
pelos agentes de migração e pela necessidade de braços para substituir os
escravos libertados no Brasil, responde, po seu conjunto, a uma verdadeira
necessidade do povo italiano, e será em relação com o aumento anual da sua
população. Portanto, nao se trata de um fenômeno passageiro, mas de um fenômeno
que tem todas as características de um fato permanente. O italiano é um dos povos que tem maior aumento
anual de população. Aumenta, na proporção de onze ou doze mil, superado nisto
unicamente pela Holanda, que se avantaja pelo excedente dos nascimentos sobre as mortes, de treze por mil. - 359 -
É por isso que, apesar da
considerável migração, a população do Reino aumenta, e dentro de poucos anos,
as nossas belas terras terão um máximo de densidade.
Segundo cálculos exatos,
aumentando a população, como nos últimos vinte anos, os italianos dentro de um
século, serão cem milhões. Admitindo também, em conseqüência de uma ampla
colonizaçao interna, poder hospedar dentro dos limites do Reino, outros dez milhões,
chegará assim a quarenta ou cinqüenta milhões. Na Itália, se todas as suas
regiões tivessem a densidade da população da Lombardia — teremos sempre um imenso povo de outros cinquenta milhões, que se
espalhará, no século futuro, pelo mundo, impelido por uma força à qual, em vão se resiste: a luta pela sobrevivência.
Cinqüenta milhões de italianos, ó senhores, dispersos sobre a face da terra,
como folhas arrebatadas por um turbilhão! 3
“A migração
é um fato natural e uma necessidade invencível.”
A migração é um fato
natural e uma necessidade invencível. É uma válvula de segurança, dada por Deus
a esta sofrida sociedade. É uma força conservadora, muito mais poderosa que
todos os compressores morais e materiais, inventados e colocados em ação pelos legisladores,
para tutelar a ordem pública e para garantir a vida e os bens dos cidadãos. É
conhecido o provérbio: maldita fome. Quem poderia reter um povo que desencadeia
sob as convulsões do ventre, se não tivesse a esperança de encontrar, em outro
lugar, o pão quotidiano?
Portanto, àqueles que, ao
considerar as misérias ocasionadas pela migração, exclamam serenamente: Por
que, tanta gente migra? É fácil responder. A migração, na quase totalidade dos
casos, não é prazer, mas uma necessidade invencível. Sem dúvida, existe,
também, entre os migrantes pessoas más, vagabundas
e viciadas. Estes são em número menor. A
grande maioria, para não dizer a totalidade dos que abandonam a pátria, para ir
para a longínqua América, não é desta têmpera. Não fogem da Itália, por aversão
ao trabalho, mas porque este lhes falta e não sabem como viver e manter a
própria família.
Um
excelente homem, cristão exemplar de um povoado de montanha, onde me encontrava, alguns anos atrás,
em visita pastoral, veio pedir-me uma bênção e uma pequena lembrança para si e
para os seus, que partiam para a América. Às minhas observações, ele colocou
tão simples, quanto doloroso dilema: ou roubar ou migrar: - 360 -
Roubar não devo, nem
quero, porque Deus e a lei me proibem; ganhar aqui o pão para mim e para meus
filhos não me é possível. Que fazer então? Imigrar é o único recurso que me
resta.
Não soube acrescentar
nada. Abençoei-o comovido, recomendando0 à proteção de Deus e me
convenci, uma vez mais, ser a migração uma necessidade que se impõe, como
remédio supremo e heróico, ao qual é necessário submeter-se, como o paciente
submete-se àdolorosa operação, para evitar a morte.
A religião e a migração,
eis os dois únicos meios que poderão, no futuro, salvar a sociedade de uma
grande catástrofe. Uma enviando a outros continentes o excesso da população, a
outra consolando, com caras esperanças, a desesperada dor dos infelizes. 4
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