- 28 -
c) DEUS PARA NÓS: CRISTO CRUCIFICADO
“Banido o
Crucifixo? O Crucifixo é o fundamento.”
Em nosso
século uma voz desprendida de cem peitos, fez a volta ao mundo, gritou e grita:
fora o Crucifixo! E desgraçadamente, conseguiu, em - 29 -
parte, tão infernal intento. Há tempos o Crucifixo era o
mais belo ornamento das casas cristãs; hoje, outras imagens tomaram o seu
lugar. Há tempos, a família cristã se inspirava no Crucifixo e dele tomava nome
e exemplo: hoje outros são os objetivos em que se inspira; bem diversas as
normas, que têm diante de si. Mas, banido o Crucifixo dos ambientes, das escolas,
dos parlamentos, desterrado o único que poderia remediar seus males, que
aconteceu à pobre sociedade? Não quero negar alguns dos títulos de que se
orgulha o nosso século: o progresso das ciências, o desaparecimento das
distâncias, as muitas descobertas, pelas quais o homem é capaz de arrancar da
natureza os segredos mais ocultos, mas com tantas maravilhas é queixa universal
que, em nenhuma época, a sociedade foi mais terrivelmente abalada e agitada, do
que o é na época hodierna (...).
Moveu-se guerra ao Crucifixo. Eis a causa de tantos infortúnios. É uma
verdade que alguns não querem compreender. Culpa-se a injustiça dos homens, a
maldade dos tempos. Ah! Não. Convém rasgar as vendas que escondem a verdade,
aos nossos olhos. Convém penetrar mais fundo. O crucifixo é o fundamento de
todas as coisas, escreve São Paulo. Quem desdenha construir sobre tal
fundamento só pode acumular ruínas, sobre ruínas (...).
Jesus crucificado é o
centro do universo. É a aliança preciosa que une a obra do Onipotente ao Criador
Divino. É a meta de todas as produções e de todos os desígnios da Providência.
É a razão suprema, última de todos os alvos de Deus sobre a humanidade
redimida, que longe d’Ele, toma-se em si mesma, imagem de um cego, que vacila e
cai sob os raios do mais esplêndido sol; é a norma de todo verdadeiro progresso
social, sendo Ele a verdadeira luz que ilumina todo homem, e a sociedade toda.
43
A cruz fica
em pé enquanto a terra gira.
Cristo vence, Cristo reina, Cristo triunfa. Temos também hoje, uma
prova, em meio aos cataclismas da história, em meio aos frangalhos dos centros
e das coroas, entre o nascer e a morte das instituições humanas, entre o surgir
e o desaparecer de todas as heresias, entre o bramir dos mares bravios, no
enfurecer do turbilhão, está a cruz. A cruz, farol de luz inextinguível, árvore
da nossa salvação, troféu glorioso purpurado com seu divino sangue: “A cruz
fica em pé enquanto a terra gira”. 44
- 30 -
“A Cruz
grita-nos: amor!”
A cruz nos grita Amor: A cruz grita: amor que se fez vítima de expiação
por ti, que a tal ponto te amou até morrer por ti, sobre um patíbulo; mas não
compreende este grito quem não repete com o Apóstolo: “o mundo está crucificado
para mim e eu para o mundo.” A cruz é a escola mais segura do Amor. Cuidado,
pois, se no correr dos dias, esqueceis o mistério da cruz, mostrareis, que
vosso coração não arde de amor, que transcurais o grande preceito, que nos
obriga a colocar, em
Jesus Cristo, todos os nossos afetos, a estabelecer em vosso
coração o seu reino, que é o reino do amor.
Amai Jesus, então
compreendereis que o povo cristão, o povo dos crentes, compõe-se unicamente
daqueles que honram, que amam a Cruz, ou morrem nela... 45
“Toda vida de Cristo: cruz e martírio.”
Ele é o grande modelo da
vida cristã; modelo, ó meus queridos, tão essencial, que na semelhança com Ele,
como atesta São Paulo, consiste o segredo da nossa predestinação. Que vida teve
Ele para subir ao céu? De riqueza, de glória, prazer, ou de pobreza, humilhação
e dor? Toda a sua vida, escreve Crisóstomo, não foi senão cruz e martírio!
Desde o primeiro até o último instante, quanta miséria, quantos aborrecimentos,
quantas fadigas, quantas perseguições, quantas calúnias, quanto sofrimento,
quantas dores! E como, depois disto, não reconhecer na penitência, o verdadeiro
bem, o caminho breve, seguro, único
de nossa salvação? 46
“Cristo
Jesus diz a todos: ‘Fazei penitência.’”
O que nos fala, é diletíssimos, o divino Mestre? Antes de tudo, veio,
para chamar os pecadores, ou seja, todos os homens, à penitência. Diz que o
reino dos céus padece violência e que só os fortes o conquistam. Diz: “quem não
leva a sua cruz e não vem após mim, não pode ser meu discípulo.” Diz ainda:
“Fazei penitência.” Acrescenta depois: “Se não fizerdes penitência, todos
perecereis”(...).
De seus lábios adoráveis
eu não ouço, senão uma palavra, um ensinamento, uma ordem: “Penitência!” E a
quem o diz? A todos, adverte o evangelista São Lucas, talvez prevendo as falsas
interpretações de tantos - 31 -
cristãos
modernos, que gostariam de restringir apenas, aos habitantes do claustro, a
prática de um preceito tão absoluto. Sim, Jesus Cristo fala a todos: aos
pequenos e aos grandes. aos jovens e aos velhos, aos pobres e aos ricos, ao rei
que está no trono, aos religiosos em seu retiro, aos sacerdotes, no exercício
do seu ministério, aos industriais no seu comércio, aos artesãos, na sua
oficina, a todos, sem distinção de grau, de condição, de tempo, de lugar, de
idade. Dirigia-se a todos, porque ninguém pode dispensar-se da penitência, que
nos conserva firmes, na lei de Deus,
a não ser quem renuncia à salvação eterna. 47
“O
exercício da mortificação evangélica.”
Quem
quiser vir após mim, diz Jesus, nosso divino Mestre renegue-se a si mesmo,
carregue sua cruz” e com este distintivo, siga-me. “Renegue-se a si mesmo”,
quer dizer, ao próprio intelecto, submetendo-o à fé; à própria vontade, fazendo
sempre a de Deus; aos apetites descontrolados, seguindo em tudo, unicamente o Santo Evangelho. “Carregue”, em segundo lugar
“a sua Cruz”, quer dizer, sofra com paciência e com resignação todos os males
da vida presente, as tribulações, os dissabores, as fadigas inerentes ao
próprio estado. Com este sinal “siga-me”, quer dizer: caminhe nas pegadas de
Jesus Cristo, revista-se do seu espírito, entre em seu modo de ver, anime-se de
seus sentimentos, oriente-se pelas suas máximas, conforme-se com sua vontade,
abandone-se à sua Providência. Ora, que significa tudo isto, senão que, para
viver vida Cristã é necessário o
exercício da mortificação evangélica? É tão necessaria que sem ela, estamos
perdidos para sempre: Se não fizerdes penitência perecereis, é a verdade
encarnada que nos diz: “perecereis todos, igualmente” (Lc 13,3). 48
“Dois sacrifícios,
indivisivelmente unidos”
É necessário suprir de nossa parte o que falta a sua paixão,
“Completo”, dizia São Paulo, “na minha carne o que falta à paixão de Cristo”
(Cl 1,24).
Esta é a suprema lei à qual está subordinada a nossa salvação.
O sacrifício de Jesus Cristo e o nosso sacrifício, são dois sacrifícios,
igualmente necessários: são dois sacrifícios, que não aplacam a justiça divina,
se não forem, indivisivelmente unidos, porque nosso sacrifício, - 32 -
desacompanhado do sacrifício de
Cristo, é indigno de Deus; o sacrifício de Cristo, desacompanhado do nosso
sacrifício é inútil para nós.
Assim
se explica, em parte, o grande mistério da dor, contido na ordem presente do
universo. A dor e a morte, chagas inevitáveis da natureza, no estado em que
agora se encontra, foram transformadas, em meio de perfeição e de glorificação
e por isso, de conforto e de alegria e deste modo, recolocadas na ordem da
divina sabedoria e bondade. Daí a obrigação de conformarmo-nos à paixão de
Jesus Cristo, se quisermos tomar parte em sua o glória. “Completo na minha
carne, o que falta à paixão de Cristo.” 49
“Mortificando-nos,
nós queremos edificar e não destruir.”
Alguns fazem uma idéia muito superficial e errônea da penitência
cristã; acreditam que mortificar-se seja querer padecer, pelo simples gosto de
padecer. Não, diletíssimos. Muito mais alta é a meta que aspiramos.
Mortificando-nos, direi como um filósofo ilustre, não queremos destruir, mas
edificar, queremos reprimir a carne, para dar liberdade ao espírito,
despojar-nos do homem velho, para revestir-nos do homem novo, renunciar nossa
vontade corrupta, para colocar em seu lugar a santa vontade de Deus, morrer ao
amor próprio, para viver a caridade, e abater o reino do mal, perseguindo-o em
si e nos cúmplices externos e internos, para fundar em nós, o reino do bem, o
reino da verdade e do amor, perder alguma coisa do presente, para assegurar-nos
o futuro. Queremos, em outros termos, retomar a nossa coroa, ser não somente
homens, mas cristãos, reinar no tempo e na eternidade. 50
“Replenar-se
de alegria em toda tribulação.”
Se o seu
ânimo fosse sempre festivo, quanto à carta, que me escreveu, deveria alegrar-me
muito e se eu puder oferecer-lhe um pouco de consolação ao seu espírito
amargurado, estarei à disposição. Espero que a calma e a alegria retornem. A
providência conduz V. Eminência, por caminhos não comuns e inacreditáveis; é
este o motivo de alegria para seus verdadeiros amigos, e o é, também para o senhor.
A razão e a fé nos ensinam que o que sentimos em nosso íntimo, isto é, tudo o
que se faz, é querido, ou permitido por Deus, infinito amor. Às vezes, pelos
desígnios da cruz, embora imerecida, quer os seus servos humilhados, não
confundidos, os quais - 33 -
devem
meditar com prazer as divinas disposições, amar, agradecer sempre, replenar-se
de alegria, em cada tribulação.
As tribulações interiores espargem uma
salutar amargura na vida presente, nos desapegam insensivelmente de tudo o que
é mortal e nos proporcionam o dom inestimável de fazer-nos conhecer o nada das
grandezas, em meio a elas, e não existe graça mais bela.
Mas a
sabedoria de Deus, Eminentíssimo, dispôs verdadeiramente tudo, com força e
suavidade e se por alguns momentos oferece-nos o cálice da amargura,
oferece-nos depois, a bebida das mais gratas alegrias. É um cálice misterioso
que se alterna e feliz quem sabe apreciá-lo com inabalável fidelidade,
unindo-se assim, intimamente a Deus. A principal arma de que necessitamos é a
paciência, a oração. 51
“Ide,
apóstolos de Jesus Cristo, e não temais; acompanha-vos a cruz.”
O sinal universal de resgate, levantado, no
meio dos povos, é a cruz. A sociedade dos primeiros remidos é a Igreja. A palavra
que voa de um lugar para outro, de povo em povo, anunciadora de salvação é o
apostolado católico. E, graças aos céus, desde que sobre o Gólgota foi hasteado
aquele sinal, desde que, no mundo, aparece a Igreja, não cessou de ouvir-se
entre os povos, a palavra que anuncia a glória de Deus, que ilumina as mentes,
vivifica os corações, regenera as almas, e, atraindo de toda a parte os irmãos
dispersos, recompõe na unidade de fé, esperança e amor, a família humana (...).
Ide, portanto, ó
generosos Apóstolos de Jesus Cristo, onde Ele vos chama. Esperam-vos, grandes
fadigas, graves perigos, tribulações múltiplas, lutas e sacrifícios contínuos,
mas não temais: — acompanha-vos a Cruz..
Acompanha-vos a cruz, sinal dos triunfos passados, penhor dos triunfos futuros,
para vosso conforto, a cruz que, opróbrio aos gentios, escândalo aos judeus,
tomou posse da terra. (...)
Não temais: acompanha-vos a Cruz. A cruz é a defesa dos humildes,
abatimento dos orgulhosos, a vitória de Cristo, a derrota do inferno, a morte da
infidelidade, a vida dos justos, a plenitude de todas as virtudes. A cruz é a
esperança dos cristãos, a ressurreição dos mortos, a consolação do pobre, o
lenho da vida eterna, a força de Deus. Não temais acompanha-vos a Cruz. A cruz
forma os heróis da Religião, sustenta-os, anima-os, guia-os, torna-os - 34 -
superiores à carne, ao sangue, às
alegrias, às dores, infunde-lhes nos ânimos, os santos desejos do mártir de
Cristo, que sabe viver e morrer exclamando: Viva Jesus, viva a cruz, viva o
martírio: “Não me gloriarei senão na Cruz de N. S. Jesus Cristo.”
A cruz é loucura para o
mundo, mas para vós tomar-se-á sabedoria e vida; vale mais uma hora empregada a
meditá-la, que longos anos consumidos sobre os livros eruditos, que sozinhos,
incham e perdem, e sem eles, somente com a cruz, sobe-se muito alto na ciência
de Deus. Ah! Sim a Cruz é bálsamo para toda ferida, lenitivo para toda dor,
sustento para toda fraqueza, conforto para toda fadiga, claridade para toda
dúvida, luz para toda obscuridade. Nas aflições, nos desânimos, nas desilusões,
abraçai a Cruz que vos entreguei. Com inteiro abandono, nas mãos de Deus,
levantando os olhos ao céu, repeti: “Inebria-me, ó Cruz”, não me gloriarei,
senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. O vosso coração se dilatará e a
vossa alma se abrirá a todas as doçuras da esperança cristã e as vossas obras
tornar-se-ão preciosas para o céu. 52
|