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c) OS POBRES
“ O pobre, imagem viva e eloqüente
de Jesus Cristo.”
Que é o pobre aos olhos
do mundo? É um banido, refugo da natureza, que parece desapercebido aos olhos
da Providência, um mísero que se arrasta, no meio do lodo e da poeira, um vil
estorvo, um peso inútil para a sociedade e nada mais. Tal é o conto que, há
quatro mil anos, se tinha do pobre, porque a pobreza era concebida como uma
mancha ignominiosa~ como flagelo de Deus, como uma maldição que só
podia cair sobre a cabeça de um culpado. Eis, porém, que a sabedoria incriada,
o Mestre de todos os Mestres, nos dá lições bem diferentes e antes com o
exemplo e com os fatos, mais que com a palavra, glorifica a pobreza e a em si
mesmo, desde o berço. Sim, Jesus Cristo, herdeiro do reino e da coroa de Davi,
nasceu, o Rei dos Reis, o Senhor dos Senhores, o Messias, tantas vezes
profetizado, prometido, e esperado há séculos, afinal aparece. Mas onde? De que
modo? (...).
Ele
apareceu no modo mais humilde na maior miséria. (...)
O Verbo de Deus, escolheu como cidade natal Belém, mínima entre as
de Judá! Ele que podia ter por Mãe a mais rica e nobre das mulheres hebréias
chamou à altíssima honra, a esposa de um simples artesão escondida na pobreza.
Como lugar de nascimento, escolheu um casebre aberto à inclemência da estação,
que não podia oferecer corno berço senão um presépio e poucas palhas. Enfim,
Jesus antepôs livremente ó pobres, o vosso
estado de qualquer outro e é exatamente com esta preferência que - 82 -
tolhe à pobreza toda conotação de
infâmia, antes a torna venerável, santa e digna da maior reverência aos olhos
de todos.
Que
vos poderia ser mais precioso aqui na terra, mais nobre, maior e mais digno de
estima, do que o que tem a estima e as honras de um Deus? Quando um Rei quer
nobilitar uma pobre filha do povo e torná-la respeitável por todos, que faz
ele?
Procura-a
na classe obscura, onde ela se esconde, fá-la sua esposa, convida-a a sentar-se
sobre o seu trono, coloca em sua fronte o diadema e o cetro nas mãos. Foi isto
que Jesus Cristo fez com a pobreza, escolhendo-a como companheira indivisível
do berço à sepultura, e desde aquele dia, a pobreza começou a receber no
cristianismo, as honras de rainha; desde aquele dia, o pobre começou a ser
considerado, como de fato o é, a imagem viva e eloqüente de Jesus Cristo sobre
a terra. (...)
Dir-se-ia,
escreve admiravelmente Crisóstomo, que os pobres são como tantos raios
refletidos que, unidos, compõem o que foi Jesus, cuja figura austera e triste
fez vibrar os Profetas que o contemplaram à distância de séculos.
Sim, verdadeiramente, ó diletíssimos, o pobre é uma
imagem viva de Jesus Cristo e disto nos dá segurança o mesmo Evangelho. Cristo
disse: O que fizerdes ao menor de meus irmãos é a mim que o fareis, o que
requer comunhão de personalidade e destino. Daqui as ternas e sublimes
expressões dos Santos Padres entre outros, Crisóstomo: “Quando vires o pobre,
pensa que vês o corpo e o altar de Jesus Cristo; inclina-te reverente e oferece
o teu sacrifício. A Divindade tem dois altares, um eterno e invisível, sobre o
qual nós trazemos as nossas homenagens, adorando. Quando porém, nós nos
aproximamos do pobre, então nós colocamos a oferta sobre o altar visível da
Divindade”. “Não pareis no exterior, retoma Clemente de Alexandria, mas
aprofundai o olhar e vereis escondidos no pobre, o Pai, o Verbo, e o Espírito
Santo”. E eis o pobre sublimado ao grau de imagem, de altar e de templo da
Divindade. É o Evangelho que torna evidente aos olhos profanos da carne, esta
reabilitação do pobre, iniciada no grande sacramento da piedade, que é o rebaixamento
d’Aquele que, sendo rico, fez-se mendigo por nós. 24
“São estes os seus amigos mais queridos.”
As Escrituras dizem que Jesus passava fazendo o bem a todos (At 10,38). Doce, manso, benigno, não procurava a sua
glória, o bem dos homens. - 83 -
Ele é pai
dos pobres, sustento dos fracos, consolador dos aflitos. Padece o cansaço, a
fome, a sede, as calúnias, o desprezo, os insultos. Padece da parte de todos e
até dos seus, mas não faz caso. A caridade que lhe arde no peito, o anima. A caridade
o impulsiona. A caridade lhe faz parecer tudo suave e leve. Não segue senão os
impulsos do próprio coração. Cada palavra sua é uma misericórdia, cada passo
seu, um conforto, cada ação sua, uma providência, cada prodígio, uma graça. Em
toda parte o vemos cercado de pobres, de enfermos, de publicanos, de ternas
crianças. São estes os seus amigos mais queridos e derrama sobre todos as suas
bênçãos e a todos consola.
Ele revestiu-se de nossa
humanidade, para sentir mais profundamente a compaixão e para experimentar em
si mesmo as aflições, as misérias, os sofrimentos daqueles que ama
profundamente. Acontece-lhe ver alguma desgraça? O seu coração se perturba,
geme, aflige-se e se mostra solícito em tolher a angústia, em enxugar as
lágrimas, em adoçar a amargura, em remover todas as causas de desolação. 25
“O pobre
é a pupila de Deus.”
Oh! o pobre! Ele é
privado de tantos bens da terra, mas, rico de bens do céu. Muitas vezes, ele é enjoado,
descontente, ingrato, mas em sua fronte resplandece sempre o caráter da
filiação divina e sobre a porta do seu barraco, está escrito em caracteres de
ouro, aquela consoladora sentença: o que fizerdes ao menor destes, a mim o
fareis. O pobre é a pupila de Deus e quanto fizermos ao pobre, o fazemos a Deus
mesmo.26
“A Igreja
fundada sobre doze homens pobres.”
Quais foram os ministros de Deus, escolhidos para estabelecê-la no
mundo? Talvez os personagens mais conspícuos pela fama, pelas riquezas, pela
autoridade, pela nobreza, pelo saber? Certamente teria agido assim a prudência
humana, mas a sabedoria divina não opera deste modo. Deus escolhe o que é
ignóbil e desprezível e o que não é para confundir o que é. Na fundação da sua
Igreja, Deus usa o mesmo caminho, que na criação do mundo.
Esta máquina imensa, que
se chama universo, os milhões de astros, que se movem sobre nossa cabeça, este
globo terrestre que nós habitamos, - 84 -
tudo
foi tirado do nada, tudo se rege sobre nada, tudo tem como seu único apoio e
sustento, o quê? O vazio e o nada! Suspensa a terra sobre o nada.
Pois
bem, ó diletíssimos, que se poderia desejar de melhor para convencer-nos ser o
mundo obra dirigida pelo infinito poder de Deus? E que se poderia desejar de
melhor para convencer-nos ser Igreja, esta construção gigantesca e maravilhosa,
obra do mesmo infinito poder, que vê-la sair do nada, ondejante no nada?
Vêmo-la fundada sobre doze homens, como eram os Apóstolos, sem autoridade, sem
crédito, sem proteção, pertencentes à classe mais desprezada de todo o Oriente,
pobres, fracos, tímidos, grosseiros e ignorantes, a tal ponto de confinar, pela
sua incapacidade, com o nada. 27
“O mundo
ainda acredita na caridade.”
A grande alma do imortal Pio IX, que tinha a
intuição de conhecer e de apreciar as obras da Providência, dirigia um dia a
alguns dos vossos co-irmãos, aquelas memoráveis palavras, que jamais serão
esquecidas: ó meus filhos, eu vos consagro cavaleiros de Jesus Cristo. O mundo
não acredita mais na pregação, no sacerdócio, mas acredita ainda na caridade;
pregai a verdade com a caridade, ide à conquista do mundo, com amor ao pobre.
(...)
Jesus Cristo está com os fundadores
das vossas conferências. Estes estavam na caridade, estavam em Deus e Deus
neles: quem está na caridade, está em Deus e Deus nele e sua obra abençoada
pelo céu, dilata-se, aumentando os cavaleiros de Jesus Cristo, destinados à
conquista do mundo. (...)
A
caridade, cidadã do céu, desceu entre nós, para aproximar os corações, moderar os
afãs, reerguer os anônimos abatidos, tornar felizes as famílias, com as
alegrias mais puras, conservar a paz em meio à sociedade civil, o mais belo dom
que Deus podia fazer às suas criaturas. Ela é destinada a gloriosos triunfos,
mediante vossas Conferências. Pregando a verdade, com a caridade vós
dissipareis muitos pré-juízos, também onde não é acolhida a palavra do padre e
fareis compreender ao pobre, sem fé, que tem em vós um irmão sobre a terra,
porque existe um Pai comum no céu; fareis conhecer também aos mais desatinados
e perdidos, a divindade de Cristo e de sua Religião.28 - 85 -
“A caridade
difundiu-se em nosso século.”
Não tenho palavras para expressar-vos, ó Senhores, a consolação que
experimento, todas as vezes que me é dado encontrar-me em meio a vós. Em meio a
vós que formais pequeno grupo, escolhido, porque, dedicado ao exercício da mais
nobre das virtudes, a caridade. Eu vos conheço e me alegro diante de Deus,
melhor vos conhece Deus mesmo, que vos acompanha com suas bênçãos e vos prepara
digno prêmio.
Permiti agora a vosso Pai
e Pastor, que vos ama como filhos queridos, como irmãos, direi mais, como
antigos e caríssimos amigos, dirigir-vos uma palavra de encorajamento, a fim de
que vos disponhais, não obstante as dificuldades que encontrais pelo caminho,
continuar destemidos, vossa obra sublime e gloriosa. De minha parte tenho
grande, ilimitada confiança no exercício da caridade, quando reflito sobre os
graves males que afligem a sociedade e a
Igreja, e uma nuvem de tristeza me comove, até as lágrimas, conforta-me a
esperança. Espero, espero muito que retorne logo a serenidade, que o céu sorria
aos nossos desejos, porque o exercício da caridade, não é esquecido; porque sob
vários aspectos, a caridade se difunde em nosso século e o invade todo, o
domina, o senhoreia. Sim, são grandes e são muitos os pecados do século XIX.
Quem pode enumerá-los? Mas quem pode igualmente enumerar as obras de caridade
das quais é fecundo o século XIX?
É
esta consideração, ó Senhores, que me aflora espontânea nos lábios: a
consoladora palavra de Cristo a Madalena: Muitos pecados lhe são perdoados,
porque muito amou. 29
“Só a caridade é verdadeiramente filha do céu.”
A
filantropia é bela; é a ajuda estabelecida em favor do pobre, em base aos
princípios humanitários de igualdade. É bela a beneficência: é a ajuda prestada
aos infelizes, ao reflexo da necessidade e da utilidade pública, para suprir o
aspecto aflitivo da miséria e a ocasião de inevitáveis desordens da sociedade.
Mas a caridade é mais bela; só a caridade é verdadeiramente filha do céu. Ela
possui os princípios da filantropia, ela tem os fins da beneficência, mas lhe
acrescenta como estímulo mais eficaz, o pensamento de socorrer no homem, a
imagem mesma de Deus, de socorrê-lo por vontade e por amor a Ele. - 86 -
A
filantropia nasce na cabeça do filósofo, e freqüentemente da altura da teoria,
que é uma idéia, sabe descer à prática, obra da vontade. A beneficência desce à
obra, mas embora nobilíssima e generosa, veste sempre algo medido. Geralmente
se exercita em vista e em proporção ao mal que se deve eliminar.
Só
a caridade é heróica. Ela tem uma iniciativa inexaurível, não procura
recompensa, afronta e remove dificuldades; encontra nelas uma razão de atração,
compraz-se com o sacrifício, nunca esmorece. 30
“A dor é o
cetro das grandes almas.”
A
dor é o cetro das grandes almas. É a chave da cidade eterna. É o caminho régio
que leva à pátria. Tende coragem, ó diletíssimos. Se Deus vos conserva nos sofrimentos
e vós os sofreis com resignação cristã, estais no verdadeiro caminho da
salvação e chegareis um dia a reinar, com os santos no céu.
É
verdade que a pobreza é uma cruz pesada, mas através dela vai-se ao Céu:
bem-aventurados os pobres, nos diz o Mestre divino com palavras inefáveis:
bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
Viver
constantemente enfermo, sofrendo, fatigando-se muitas vezes, arranca lágrimas.
Mas, alegrai-vos, porque bem-aventurados os que choram, porque eles serão
consolados. Sofrer perseguições e injustiças, nos aflige a todos, mas
bem-aventurados aqueles que sofrem por causa da justiça, porque deles é o
prêmio eterno: bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça,
porque deles é o reino dos céus.
As
injúrias, os gracejos, os escárnios, as calúnias nos transpassam o coração.
Compadeço-me da fraqueza humana, mas desfaleço pela pouca fé, enquanto Jesus
Cristo nos diz: bem-aventurados sereis, quando os homens vos maldisserem, vos
perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós, então alegrai-vos e
exultai ..., naquele dia. Oh! quanto nos enganamos, caríssimos, lamentando-nos
das nossas cruzes, das nossas aflições, das nossas desgraças! Olhemos para
Jesus Cristo, que viveu sempre na pobreza, na dor e no desprezo e morreu no
madeiro da cruz. Olhemos freqüentemente para a rainha dos Mártires, olhemos
para os Santos e assim nossas tribulações serão amáveis, ao menos as
suportaremos com resignação. 31 - 87 -
“Vim pobre
e pobre parto.”
Sadio
de mente e de corpo, entendo fazer, como faço, com o presente escrito, o meu testamento.
Agradeço a SS. Trindade, que me
concedeu a graça do sacerdócio e do Episcopado e prostrado diante de sua
infinita grandeza, chorando peço perdão de todas as ofensas feitas por minhas
infidelidades, ao augusto caráter impresso em minha’lma.
Vim
a Placência pobre e pobre parto para a eternidade.
Aquele pouco que
verdadeiramente me pertence, será suficiente para pagar as contas e as despesas
do meu funeral, que quero modestíssimo, salvo disposições da Santa Igreja
Católica Apostólica e Romana, na qual fui batizado e na qual quero morrer.
Proíbo qualquer elogio fúnebre. 32
“Seria estranho que um Bispo morresse sobre a palha?”
Seria
estranho que um Bispo morresse sobre a palha, quando Nosso Senhor nasceu sobre
a palha e morreu na Cruz? 33
“Forneci
pão a um grande número de infelizes.”
No inverno passado, minha cidade e Diocese foram
atingidas por verdadeira carestia, mas colocando-me a serviço, para aliviar
tantos pobrezinhos, com a ajuda de Deus, pude conseguir mais de 250 mil liras,
que me foram entregues, em parte, por institutos públicos e privados, dando-me
assim condições de fornecer o pão a grande número de infelizes e um verdadeiro
triunfo para a Religião. O fato aconteceu, como sói, engrandecido pelos
jornais. Os deputados, em número de seis, que pertencem à Diocese, com dois
senadores, também estes diocesanos, levaram a coisa a conhecimento do Rei
Umberto, que me enviou agradecimentos, protestos de veneração etc.
Deixei cair
tudo no esquecimento; não acreditava que muitos se preocupassem com o que faço.
Mas, quando abri o Instituto para as surdas e mudas e realizada alguma obra de
caridade, renovaram-se para meu desgosto, já que gosto que me deixem tranquilo,
os mesmos exageros e nestes dias, veio visitar-me um personagem da corte. Este
expressou-me os sentimentos reais e o desejo que tinham de dar-me uni atestado
público de reconhecimento. O gentil homem estava preparado para cada objeção
que eu fazia. Disse-me que o relativo Decreto referia-se somente às obras de
beneficência, que outros - 88 -
Bispos
tinham recebido medalhas pela cólera, que era um modo-próprio do Rei, que
poderia servir-me para o bem da Igreja, que se tratava de uma condecoração
suprema, mas não política, (pareceu-me que acenava à ordem da SS. Anunciata.)
etc.
Respondi
gentilmente, mas sem hesitação, que as condições feitas à Igreja na Itália, que
o estado da S. Sé Apostólica e do S. Padre
eram tais que não permitiam a um Bispo aceitar qualquer condecoração, ainda que
fosse da Anunciata, sem ferir o próprio caráter e dignidade episcopal.
Pedi
àquele Sr. Marchese, para levar as razões da minha recusa e os sentimentos de
minha gratidão, pela atenção que tiveram para comigo, e o despedi com
respeitosa urbanidade, dizendo-lhe que talvez teria escrito diretamente a quem
o havia enviado. Eis a minha dúvida, Exmo. Príncipe, devo escrever? Se o devo,
seria minha intenção escrever uma carta na qual, depois dos agradecimentos e
dos motivos da recusa, exporia as múltiplas e sanguinolentas injúrias feitas,
também em nossos dias, à Igreja, à Santa Sé, ao Santo Padre, exortando Sua
Majestade com respeito, mas francamente a por fim, quanto possível, à estes
males, assegurando que tal é o prêmio que espera dele, todo o Episcopado do
Reino etc. Desejada de forma conveniente, fazer chegar aos ouvidos do Rei,
verdades severas. Mas não sei se me decido a fazer, nem quero abrir o coração a
ninguém, tratando-se de coisa delicadíssima.
Se
não devo escrever, V. Eminência Revma. coloque em seu cartão de visita a
palavra “negativo”, se o devo “afirmativo”.
As
razões me dirá quando terei a honra e a consolação de cumprimentá-lo, em Roma. 34
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