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Congregações Scalabrinianas dos Missionários
e Missionárias de São Carlos
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  • QUINTA PARTE       HOMEM DOS MIGRANTES E PARA OS MIGRANTES
    • 1. A MIGRAÇÃO VISTA POR SCALABRINI
      • a) AS DIMENSÕES E AS CAUSAS
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a) AS DIMENSÕES E AS CAUSAS

 

“Eram migrantes.”

 

Há vários anos, em Milão, fui expectador de uma cena que deixou em meu espírito, uma impressão de profunda tristeza.

Passando pela estação, vi a vasta sala, os pórticos laterais e a praça adjacente invadidos por trezentos ou quatrocentos indivíduos, vestidos pobremente, divididos em diversos grupos. Em suas faces bronzeadas pelo sol, sulcadas por rugas precoces que a privação


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costuma imprimir, transparecia o tumulto dos afetos que agitavam seus corações, naquele momento. Eram velhos curvados pela idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres que levavam após si ou carregavam ao colo suas crianças, pequenos e jovens todos irmanados por um único pensamento, todos orientados para uma meta comum.

Eram migrantes. Pertenciam às várias províncias da Alta Itália e esperavam, com ansiedade que o trem os levasse às margens do Mediterrâneo e de lá para as longínquas Américas, onde esperavam encontrar a fortuna, menos desfavorável, e a terra menos ingrata aos seus suores.

Aqueles pobrezinhos partiam. Alguns chamados por parentes que os haviam precedido no êxodo voluntário, outros sem saber precisamente para onde seriam levados, atraídos por aquele instinto forte que faz os pássaros migrarem. Iam para a América, onde ouviam repetir, tantas vezes que havia trabalho, bem pago, para quem tivesse braços vigorosos e boa vontade.

Eles, em lágrimas, tinham dito adeus ao povoado natal, ao qual os ligava tantas lembranças agradáveis; mas, sem saudade dispunham-se a abandonar a pátria. Pois eles não a conheciam, senão sob duas formas odiosas: o alistamento e o cobrador de impostos. Para o deserdado, a pátria é a terra que lhe dá o pão: lá longe, longe, esperavam encontrar o pão, menos escasso, menos suado.

Parti comovido. Uma onda de pensamentos tristes me amarguravam o coração. Quem sabe que cúmulo de desgraças e de privações, faz parecer-lhes doce, um passo tão doloroso!... Quantos desenganas, quantas novas dores lhes prepara o futuro incerto! Quantos sairão vitoriosos na luta pela existência? Quantos sucumbirão, entre os tumultos das cidades ou no silêncio das planícies inabitadas? quantos embora encontrando o pão do corpo, sentirão a falta do pão da alma, não menos necessário que o primeiro, e perderão numa vida toda material, a fé de seus pais?

Desde aquele dia, a mente me transportava freqüentemente para aqueles infelizes, e aquela cena relembra sempre outra nao menos desoladora, não presenciada, mas percebida nas cartas dos amigos e no relacionamento com os viajantes. Eu os vejo desembarcados em terra estrangeira, no meio de um povo que fala uma  língua que eles não entendem, vítimas fáceis da especulação desumana. Vejo-os banhar com seus suores e com suas lágrimas, um solo ingrato, uma terra que exala miasmas pestilentos; arrebentados pelas fadigas, consumidos pela febre, a suspirar em vão, pelo céu da pátria distante e pela antiga miséria do casebre nativo e finalmente sucumbir, sem que a saudade de seus caros os console, sem que a palavra da fé lhes mostre o prêmio, que Deus prometeu aos


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bons e aos desventurados. E aqueles que triunfam na rude luta pela existência, ei-los lá do seu isolamento, esquecer completamente toda noção sobrenatural, todo preceito da moral cristã e perdem cada dia mais o sentimento religioso, não alimentado pelas práticas de piedade e deixam que os instintos brutais tomem o lugar das aspirações mais elevadas.

Diante de tão lamentável estado de coisas, eu me faço constantemente a pergunta: como remediar isto? E todas as vezes que me acontece ler nos jornais, qualquer circular do governo que coloca as autoridades e o público de sobreaviso, contra as artes de certos especuladores, os quais fazem verdadeiros saques de escravos brancos, para empurrá-los, cegos instrumentos de ávidas coças, longe da terra natal, com a ilusão de fáceis e abundantes lucros; quando, das cartas dos amigos ou das relações dos viajantes observo que os párias migrantes são os italianos, que os trabalhos mais vis, se é que possa existir vileza no trabalho, são feitos por eles, que os mais abandonados, e portanto os menos respeitados, são os nossos patriotas, que milhares e milhares de nossos irmãos vivem, quase sem defesa da pátria distante, objeto de prepoocias muitas vezes impunes, sem o conforto de uma palavra amiga, confesso-o. a chama da vergonha sobe-me ao rosto.

Sinto-me humilhado na minha qualidade de sacerdote e de italiano, e me pergunto de novo: como ajudá-los?

Também, há poucos dias, um distinto viajante me trazia a saudação de várias famílias dos montes placentinos, acampados às margens do Orenoco: Diga ao nosso Bispo que lembramos sempre e de seus conselhos, que reze por nós e que nos mande um padre, porque aqui, se vive e se morre como animais...

Aquela saudação dos filhos distantes soara para mim como uma reprimenda... 1

 

“Um dos fatos mais importantes da vida moderna italiana.”

 

Um dos fatos mais importantes da vida moderna italiana é a sua migração. Importante pelo número, pelas questões sociais que envolve, pelo mal estar econômico que estimula. Segundo os cálculos estatísticos, os italianos migrantes que vivem atualmente nas Repúblicas Americanas ultrapassam o número de dois milhões. Mais de um milhão de Repúblicas do Sul, quatrocentos mil aproximadamente no Brasil, e o resto nas vastas partes da América e sobretudo ao Norte. Somente a cidade de Nova Iorque conta 85 mil.


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No decênio 1880-1890 ultrapassaram os confins do Reino, dois milhões de habitantes um milhão pela migração temporária, verdadeiro fluxo e refluxo de pessoas que oferece aos trabalhos da Europa, a mão-de-obra inteligente e zelosa dos nossos operários, que trazem para a pátria honra e dinheiro; e um milhão de migração permanente ou seja, gente que vai além-oceano, com a esperan ça, quase sempre frustrada, de retornar e se espalha nas jovens Repúblicas Americanas, ao Sul e ao Norte, nas cidades populosas, nos pampas desertos e nas florestas virgens, levando em toda parte uma atividade, sempre apreciada e considerada (...).

Estas cifras não têm necessidade de longo comentário. Elas falam clara e rigorosamente, que no biênio 87-88 saiu maior número de cidadãos do Reino da Itália, que da França, dos Países Baixos, da Espanha, de Portugal, da Áustria, da Bélgica, da Dinamarca, da Suíça juntos. Dizem que a nossa migração é o quádruplo da Rússia, o triplo da Alemanha que tem uma notável migração em alguns milhões, superior à do Reino Unido, que tem colônias florescentes e negócios em todas as partes do mundo. 2

 

“Um fenômeno que tem todas as características de um

fato permanente.”

 

As cifras expostas são enormes, mas o fenômeno migratório parece não ter chegado ao seu ápice, pois, apesar das dificuldades colocadas pela lei vigente, quase há dois anos, limita o traballio dos agentes de migração; apesar dos desenganos e dos gritos de dor, que, de tanto em tanto, atravessando o Atlântico, nos fazem estremecer e corar, enfim, malgrado as proibições governatívas, o êxodo doloroso continua. O Senhores, acontece que a migraçao italiana, que foi e continua sendo aumentada, especialmente pelas nossas tristes condições agrárias, que foi e é estimulada, além das medidas, pelos agentes de migração e pela necessidade de braços para substituir os escravos libertados no Brasil, responde, po seu conjunto, a uma verdadeira necessidade do povo italiano, e será em relação com o aumento anual da sua população. Portanto, nao se trata de um fenômeno passageiro, mas de um fenômeno que tem todas as características de um fato permanente. O italiano é um dos povos que tem maior aumento anual de população. Aumenta, na proporção de onze ou doze mil, superado nisto unicamente pela Holanda, que se avantaja pelo excedente dos nascimentos sobre as mortes, de treze por mil.


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É por isso que, apesar da considerável migração, a população do Reino aumenta, e dentro de poucos anos, as nossas belas terras terão um máximo de densidade.

Segundo cálculos exatos, aumentando a população, como nos últimos vinte anos, os italianos dentro de um século, serão cem milhões. Admitindo também, em conseqüência de uma ampla colonizaçao interna, poder hospedar dentro dos limites do Reino, outros dez milhões, chegará assim a quarenta ou cinqüenta milhões. Na Itália, se todas as suas regiões tivessem a densidade da população da Lombardia teremos sempre um imenso povo de outros cinquenta milhões, que se espalhará, no século futuro, pelo mundo, impelido por uma força à qual, em vão se resiste: a luta pela sobrevivência. Cinqüenta milhões de italianos, ó senhores, dispersos sobre a face da terra, como folhas arrebatadas por um turbilhão! 3

 

“A migração é um fato natural e uma necessidade invencível.”

 

A migração é um fato natural e uma necessidade invencível. É uma válvula de segurança, dada por Deus a esta sofrida sociedade. É uma força conservadora, muito mais poderosa que todos os compressores morais e materiais, inventados e colocados em ação pelos legisladores, para tutelar a ordem pública e para garantir a vida e os bens dos cidadãos. É conhecido o provérbio: maldita fome. Quem poderia reter um povo que desencadeia sob as convulsões do ventre, se não tivesse a esperança de encontrar, em outro lugar, o pão quotidiano?

Portanto, àqueles que, ao considerar as misérias ocasionadas pela migração, exclamam serenamente: Por que, tanta gente migra? É fácil responder. A migração, na quase totalidade dos casos, não é prazer, mas uma necessidade invencível. Sem dúvida, existe, também, entre os migrantes pessoas más, vagabundas e viciadas.  Estes são em número menor. A grande maioria, para não dizer a totalidade dos que abandonam a pátria, para ir para a longínqua América, não é desta têmpera. Não fogem da Itália, por aversão ao trabalho, mas porque este lhes falta e não sabem como viver e manter a própria família.

Um excelente homem, cristão exemplar de um povoado de montanha, onde me encontrava, alguns anos atrás, em visita pastoral, veio pedir-me uma bênção e uma pequena lembrança para si e para os seus, que partiam para a América. Às minhas observações, ele colocou tão simples, quanto doloroso dilema: ou roubar ou migrar:


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Roubar não devo, nem quero, porque Deus e a lei me proibem; ganhar aqui o pão para mim e para meus filhos não me é possível. Que fazer então? Imigrar é o único recurso que me resta.

Não soube acrescentar nada. Abençoei-o comovido, recomendando0 à proteção de Deus e me convenci, uma vez mais, ser a migração uma necessidade que se impõe, como remédio supremo e heróico, ao qual é necessário submeter-se, como o paciente submete-se àdolorosa operação, para evitar a morte.

A religião e a migração, eis os dois únicos meios que poderão, no futuro, salvar a sociedade de uma grande catástrofe. Uma enviando a outros continentes o excesso da população, a outra consolando, com caras esperanças, a desesperada dor dos infelizes. 4

 

 




1. A migração italiana na América, Placência, 1887, pp. 3-6.



2. I Conferência sobre migração (AGS 5/3), feita em Roma, no dia 8-2-1891.



3. Id.



4. A migração italiana na América, Placência, 1887, pp. 7-8.

5. Id., pp. 8-10.

 






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