"O que fizeste? A voz do sangue do teu irmão brada por mim!"
Com efeito, na Carta Encíclica Evangelium vitae (25 de Março
de 1995), João Paulo II delineia
o panorama inquietador das ameaças contra a vida humana
na realidade contemporânea (cf. n. 3) e descreve como "com as novas perspectivas
apresentadas pelo progresso científico
e tecnológico nascem novas formas de atentados à dignidade do ser humano" (cf. n. 4), que
todos nós conhecemos muito bem (cf. nn.
10-17). Aliás, na nossa
época consolida-se um aspecto
novo, inédito e ainda mais iníquo:
vastos estratos da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida e reivindicam a sua autorização por parte do Estado (cf. n. 4).
Em seguida,
o Santo Padre fala de "um
espectáculo verdadeiramente
alarmante" (cf. n. 17a), de "ameaças programadas de maneira científica e
sistemática" (cf. n.
17b), de "uma objectiva
"conspiração contra a vida", que vê implicadas também
as instituições internacionais" com a cumplicidade dos mass media (Ibidem), de "uma verdadeira e própria estrutura do pecado" (cf. nn. 12a, 24a e 59b), de "uma
verdadeira "cultura da morte"" (cf. nn. 12a,
19d, 21a, 24a, 26a, 28a-b, 50b, 87a e 95a), de uma
"guerra dos poderosos contra
os mais fracos" (n.
12b).
Aliás, há que
observar outro facto. Este mesmo documento pontifício, comentando amplamente o trecho bíblico Gn 4, 2-16,
relativo a Abel e Caim observa, entre
outras coisas: "A vida, especialmente a vida humana, pertence
unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de certa forma atenta contra o próprio Deus" (cf. n. 9a; cf. também, por exemplo, os nn. 39-40, 53 e 55a).
Sucessivamente, referindo-se às palavras do Senhor a Caim: "O que fizeste? A voz do sangue derramado pelos homens não
cessa de bradar, de geração
em geração, adquirindo tonalidades e acentos diversos e sempre novos. A interrogação
do Senhor: "O que fizeste?", que Caim não pode
evitar, é dirigida também ao homem contemporâneo
[e, por conseguinte, a cada um
de nós aqui presentes e participantes no
Congresso] para que tome consciência da amplitude e da gravidade dos atentados contra a vida, que continuam a assinalar a história da humanidade; para que vá à procura das múltiplas causas que os geram
e os alimentam; para que reflicta com
extrema seriedade sobre as consequências
que derivam destes mesmos atentados
para a existência das pessoas e dos povos" (cf. n. 10a-b).
Obviamente, não se pode numa breve homilia discorrer sobre todas estas questões,
mas de qualquer forma gostaria
de recordar que a Evangelium vitae
, entre as raízes
mais profundas da mencionada
situação inquietadora, ao lado da ideia
deturpada da liberdade (cf. nn. 18-20) enumera de modo semelhante à primeira leitura da Missa hodierna uma raiz
ainda mais profunda, ou seja "o eclipse do sentido de Deus e do homem" (cf. n. 21a). Estas duas coisas (o
eclipse do sentido de Deus
e do homem) estão estreitamente ligadas entre si. Com efeito, o Sucessor
de Pedro observa: "Quem se deixa contagiar por esta atmosfera [secularista],
entra com facilidade no vórtice de um terrível
círculo vicioso: perdendo o
sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da
sua própria vida; por sua vez, a violação sistemática da
lei moral, especialmente na grave matéria do respeito pela
vida humana e pela sua dignidade, produz uma espécie de obscurecimento progressivo da capacidade
de compreensão da presença vivificadora e salvífica de
Deus" (cf. nn.
21-22 e 36a).
"O eclipse
do sentido de Deus e do homem
leva [em seguida]
inevitavelmente ao materialismo
prático, em que proliferam o individualismo,
o utilitarismo e o hedonismo (cf.
n. 23a), além de tudo aquilo que
está vinculado a isto (como a rejeição
do sofrimento, a percepção inexacta do próprio corpo e da sexualidade, o depauperamento das
relações interpessoais e a deformação da consciência moral" (cf. nn. 23-24), revigoram
ulteriormente a falta de respeito
pela dignidade e pela vida
da pessoa humana.
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