A esfera religiosa é a
única capaz de proporcionar a verdadeira felicidade. Consolações e conselhos a
seu amigo. Ele é comovido pela estima de Ed. Guépin por ele. Dificuldades para
cuidar de um pequeno interno. Notícias dos amigos de Angers. V. Pavie se
afastou momentaneamente da Gerbe. Lacordaire encarregado das conferências de
Quaresma em N.D. de Paris.
5 de fevereiro de
1835
Sua carta anterior, caro Victor, me tinha deixado inquieto sobre sua situação e
por isso eu guardava uma impressão vaga de tristeza que me era difícil
dissipar. Tinha lido suas cartas a Gavard, Marziou, Godard, pois, na falta de
comunicações diretas com você, procuro umas sem rodeios por todos os meios, mas
em nenhum lugar achava resposta inteira à minha solicitude sobre seu estado de
coração. Por isso achei que você demorava muito a me escrever. Estou agora, não
direi mais tranqüilo, isso o assustaria, somente, caro amigo, estou menos atormentado.
Sinto-me, como você mesmo esteve, aliviado por essa efusão que lhe foi
permitida, em desvio sem dúvida e não imediata, mas que não terá sido,
certamente, sem algum eco para essa jovem alma. Como volto depressa a tudo o
que você quer e como é de bom grado que lhe entrego tanto meu coração como
minha cabeça a todo vento soprado por você. No entanto, seja estreiteza de
espírito, seja velhice de coração, seja, prefiro acreditá-lo, firme,
inabalável, exclusiva convicção, não consigo ver, idealmente ou no real,
nenhuma felicidade fora da esfera religiosa; e se não o soubesse inserido para
sempre nela, caro amigo, se não o visse tão minucioso, quase tão inquieto, por
mais que quisesse, você teria minhas ternas simpatias, mas confiança no futuro
e descanso no presente, impossível. Não saberia. Por isso, é com uma alegria
infinita que já, há longos anos, o acompanhei nesse ponto. Vi você, e
lembro-me, quase criança ainda, à força de candura, de ingênua franqueza, por
meio da arte, da poesia e dos brilhantes sonhos de nossos filósofos, a se
desembaraçar, abrir caminho e sempre ir ao alvo. Em sua última viagem, todavia,
você me parecia mudado, mas era transformação simples, eu o vi logo; em vez de
19 anos, você estava com 25, nada mais. A luta não mais estava inteiramente do
lado de fora, efetuava-se no interior, mas ali também você era mestre. Enxugada
sua fronte e caída a poeira, você se reencontrava em frente de Deus. Isso ainda
dura hoje, caro amigo, mas não tenho medo. Li as primeiras páginas do livro.
Adivinho e pressinto-lhe as últimas. Todo passado, atentamente estudado, traz
indício do futuro. O seu, caro amigo, gera sossego, é bom; é todo de
ouro, dizia Marziou, a tais pés não se impõe cabeça de barro. Isso me explica
não só meu ardor em seguir todos os seus projetos mas também minha confiança
sem limites em todas as suas idéias sobre seu próprio futuro. Você tem uma
regra, um ponto de prova; bem certo que você tudo refere a isso por vontade
expressa ou irresistível instinto, o que poderia eu recear e o que de melhor
tenho a fazer senão abandonar a você cegamente tudo o que há em mim de
sentimento para ser conduzido e controlado a seu gosto. Assim é que sempre
acontece e o senti sobretudo nessa ocasião. Isso não quer dizer que seus
negócios me parecem ter definitivamente chegado a um ponto melhor, mas a
perseverança, a persistência de vontade, em semelhante matéria me parecem quase
decisivas e, se você quiser, com teimosia, conseguirá. Quanto à feliz aplicação
desse firme querer, quanto ao julgar que o leva ao escolher, vou
confiando em você, como para todo o resto. Vá, portanto, amigo, siga seu
caminho e guarde bem a nossa lei, que me é tão cara, de me fazer participar de
toda essa obra tão íntima e tão pessoal para você.
O que me diz de seu amigo Ed. Guépin63 me comove muito. Amo-o
ternamente e eu o quereria, de toda a minha alma, feliz como ele me parece
merecer. Ele me mostra também alguma confiança, há em nós pontos de sofrimento
que combinam. Seria uma grande alegria para mim, se pudéssemos chegar a
completa simpatia; assegure-o ainda de minha dedicação sem limite; tinha
colocado ao pé de minha carta meu endereço como convite a me escrever outra
vez. Diga-lhe isso, ele tem folga, e, nos meus momentos de folga, pode, com ousadia,
tomar e escolher os melhores.
Você me agradece mais
do que precisa, caro amigo; minha intimidade com o jovem C. é menos avançada do
que você pensa e que eu quereria. O padre Buquet, diretor do Colégio,
estava no campo, na Festa dos Reis, quando me apresentei para fazer sair esse
menino. Os outros chefes, me conhecendo pouco, não se acharam no direito de
fazer, em meu favor, exceção a essa regra que proíbe confiar os alunos a toda
pessoa de fora que não está autorizada pelos pais direta e formalmente. O padre Buquet tirou o obstáculo para
o futuro, mas nas quartas-feiras (dia de saída) minha esposa está fora o dia
todo para negócios; eu, em meu escritório, como passear com o pobre menino? Não
é possível. Vejo-o, por razões análogas, muito pouco em seu colégio. Redobrarei
a vontade para agradar a você, se for o caso, caro amigo.
Lembrei ontem a Gavard o projeto de retrato pelo Sr. Ménard. Para sua esposa
isso já é coisa julgada impraticável; para ele, ele não sabe; mas do possível
ao real, há um abismo a transpor, nele sobretudo. Conto pouco com isso. Ele via
ontem uma ocasião de conseguir um emprego fraco e de pouco lucro, é verdade,
para nosso amigo. Incentivei, porém, vivamente tanto sua esposa como ele
próprio, mas... mas a vontade, tenho medo, ainda enfraquecerá aqui. Verei o Sr.
Marziou o quanto antes. Eu estava ausente quando me trouxe sua carta. Sempre
estou ausente. Vejo sempre Marziou e gosto dele cordialmente. Estamos, espero
agora, presos um ao outro por você, sobretudo, que nos serve de laço. Não é
assim entre todos os seus amigos? Não é assim em tudo? Você não é sempre o
mestre? Embora humilde e desconfiando de si, você procurava acima seus alunos,
quando seria preciso descobri-los em baixo. Eu, notadamente, só subsisto, baseado no
que restou de você. Surpreendo-me a toda hora copiando-o palidamente e vivo às
vezes quinze dias animado por uma palavra sua, animado por alguma lembrança de
que me recordo ou que Deus antes me devolve como alimento e amparo. Não tenha
mais inveja, portanto, dos pródigos e de algumas lágrimas com que o pai os
banha na volta: “fili, omnia mea tua
sunt64”, [meu filho, tudo o que é meu é teu], essa é a parte dos
primogênitos, a sua, amigo, conserve-a bem.
Você reage mal, amigo, e por um lado ruim, à sua retirada da Gerbe para este
ano; não é traição a seus amigos, não é renegar a alma amante e viva em você;
é, amigo, recolher um pouco sobre si mesmo os seus raios que não se sabia
refletir em você; deixe agir o tempo. Não entregue de você mais do que se pode
compreender de cada vez; nosso Mestre dizia aos seus: teria muitas coisas ainda
a ensinar-lhes, mas a hora não chegou, não saberiam me
compreender65, e ele ficava calado. A hora veio porém. Para você
também, amigo, na humilde esfera de sua humanidade, a hora virá, tenha
paciência, guarde somente sua alma e seu coração, guarde sua fé, sua pureza,
seu ardor, pois vão haurir ali largamente algum dia, é o tesouro raro e que não
se despreza. Mas se, por impossível que seja, uma parte íntima, a melhor
talvez, ficasse aqui embaixo desconhecida, oh! graças sejam dadas por isso a
Deus, que a reserva para si e a guarda para si essa parte. Você a dê bem
depressa a ele, não é isso o encanto indizível, a secreta alegria do místico
disce nesciri66 (aprende a ser desconhecido). Adeus, amigo, amo-o,
sigo-o e compreendo-o.
Todo seu de toda a alma
Le
Prevost
O Sr. Lacordaire fica encarregado oficialmente pelo Arcebispo das Conférences
de Notre-Dame para a Quaresma67. Teremos também o padre Coeur. Diga
isso a Ed. Guépin ,que me tinha perguntado. Respeitos, lembranças, amizades ao
seu redor.
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