A notícia necrológica
do Sr. Girard pelo Sr. Faÿ. Exortação à paciência: saber contemporizar e
suportar tudo o que não é intolerável, “precisa perdoar enormemente à
humanidade; salvaguarde acima de tudo a paz e a caridade”.
Vaugirard, 22 de novembro de 1868
Meu caríssimo
amigo e filho em N.S.
Penso
agradá-lo, assim como os nossos irmãos de Amiens, mandando-lhes uma cópia feita
pelos perseverantes, a meu pedido, de uma carta que o Sr. Faÿ escreveu aos
nossos irmãos de Roma, para lhes comunicar alguns detalhes sobre a morte
edificante de nosso caro irmão Girard. Não era destinada a um outro fim, mas me
pareceu boa para ser conservada como lembrança do irmão que tornaremos a ver
somente no Céu.
O Sr.
Lantiez me falou sobre seus problemas, relativamente ao serviço da cozinha e
aos cursos da noite. Entendo os aborrecimentos que pode ter e tomo parte neles.
Aguardo a carta que deve nos escrever, conforme disse, o Sr. Caille, para
examinar a fundo o que a situação pode pedir. Até lá, exorto-o a não tomar as
coisas muito a sério demais e a ter paciência. Com um homem cujas intenções são
tão retas como são no Sr. Caille, é bom confiar que reconhecerá seu erro, com a
condição de contemporizar um pouco. E, quanto às próprias pessoas de serviço,
têm suas fases ruins, que, uma vez passadas, permitem que se possa tirar bom
partido de qualidades momentaneamente escurecidas pelo caráter e o mau humor.
Em Vaugirard e em Chaville, estamos em situação semelhante. Muitas vezes,
sofremos tudo o que não é intolerável; em geral, é preciso encarar assim a
humanidade e perdoá-la enormemente. Há limites, seguramente, para a paciência,
refiro-me à sua sabedoria e à sua caridade para colocá-los. Conserve, no meio
desses pequenos desentendimentos, uma constante estima e uma fraterna afeição pelo
Sr. Caille: merece certamente uma e outra coisa. Salvaguarde também, acima de
tudo, a paz e a caridade: sem elas, não iríamos longe no bem.
Parece-me,
sem ter certeza, que o momento de enviar os 200f para a pequena pensão
atribuída por nós à obra de Amiens chegou. Vou efetuar o envio. Não me lembro
mais o momento em que foi feito o último pagamento, não foi no fim de setembro?
Seria, então, no fim de dezembro que teria de fazer o envio; diga-me como são
as coisas.
Adeus, meu
caríssimo filho em N.S. Assegure
todos os nossos irmãos de meus bem afetuosos sentimentos. Acho que a visita do
Sr. Lantiez encorajou a todos e que respondeu a seus pedidos, se tinham para
fazer. O Sr. Gérold pôde ser considerado como noviço, ou poderá sê-lo logo que
o momento lhe parecer chegado.
Seu amigo e
Pai
Le Prevost
Amanhã,
segunda-feira, festa do Sr. Myionnet: rezarão todos por ele, merece tão bem.
Cópia da carta do Sr. Faÿ
aos Irmãos de Roma sobre a morte do
Sr. Girard
Chaville,
2 de novembro de 1868
Meus caríssimos irmãos,
Devo a todos alguns detalhes sobre
a morte edificante de nosso excelente amigo, Sr. Girard, seu predecessor e
colaborador na Obra do Círculo Francês dos Zuavos Pontificais.
Golpeado em Roma pelo mal que o
devia levar, veio morrer em Chaville, no meio de nós, sua primeira família, e o
consideramos como uma vítima oferecida pela Comunidade para a mais santa das
causas. Apesar da dor profunda dessa separação, bendigamos ao Senhor, Fiat!
Existe algo melhor para nós todos do que sua santa e sempre amável vontade?
Desde sua volta em Chaville, apesar
do tratamento homeopático no qual colocara toda a sua confiança, o Sr. Girard
mal entrevia o final de sua indisposição. Nenhum melhora real e durável se
declarava em seu estado de fraqueza. Acompanhava o mais possível os principais
exercícios do Noviciado, e éramos edificados, como há oito meses, por sua
exatidão e sua grande modéstia. Domingo, dia 18 de outubro, assistia pela
última vez à missa, mas, nesse dia, teve que ficar no quarto, e ficou tão
fraco, a partir desse momento, que foi considerado necessário fazer deitar-se
um irmão em sua vizinhança. Direi a vocês que ocupava o quarto que está em cima
da cozinha do antigo prédio e cujas janelas dão para o pátio do Noviciado.
Quando, na segunda-feira cedo, na minha volta de Paris, revi esse bom irmão
numa incapacidade quase completa de movimentação, tive, desde esse momento,
algumas dúvidas sobre sua cura. Mal podia levar a colher à boca. Precisava
fazê-lo comer como uma criancinha e teve forçosamente, para os mínimos
serviços, que reclamar o socorro de nosso bom Sr. Xavier Walter, noviço
recentemente chegado e que, durante a doença do Sr. Girard, exerceu, sob a
direção do Sr. Audrin, as funções de enfermeiro e de acompanhante. O Sr. Jules
Ginet chegou a Paris para consultar o doutor Jousset. Trouxe de lá, com a
prescrição médica, a notícia de que o estado do doente era muito grave. O Sr.
Girard pagava todos os bons cuidados que tentávamos lhe prestar pelo exemplo de
uma paciência admirável: nunca se queixou. Contando com a caridade de seus
irmãos, dizia simplesmente o que acreditava lhe ser bom e útil, e depois pedia
desculpa, temendo parecer exigente e difícil.
Disse-me mais de uma vez que não
pedia ao bom Deus sua cura, que isso não era de sua conta. Um só pensamento o
ocupava: que sua doença pudesse servir à sua santificação e ao bem das obras.
No entanto, até a véspera de sua morte, conservava a esperança de sarar e fazia
reflexões sobre seu mal, do modo como o fazem certos doentes em fase avançada.
Fornecemos-lhe perseverantes para lhe fazer algumas leituras várias vezes
durante o dia e, como a fraqueza não lhe permitia mais escolher ele mesmo os
trechos destacados que comportava uma certa antologia, temia que seus jovens
leitores caíssem sobre uma história um pouquinho inconveniente. Sua caridade
não era menor do que sua delicadeza: pediu que cada um de seus leitores
trouxesse um livro particular, para que não enjoassem, lendo somente fragmentos
sem nexo da mesma obra. O estado do doente estava bastante inquietante, para
nos fazer recorrer a uma oração mais insistente: não podíamos nos acostumar com
o pensamento de que o bom Deus quisesse nos tirar um tão excelente irmão.
Então, nessa mesma terça-feira à noite, escrevemos a todos os irmãos de Paris e
do Interior, convidando-os a começar uma novena aos Santos Corações de Jesus e
de Maria. Um mensageiro partiu para recomendar esse caro doente às orações de
nossos pequenos órfãos de Vaugirard. Ficou decidido que, no Noviciado, iríamos
recitar cada um o terço completo durante nove dias, e que um jejum facultativo
seria proposto aos noviços, para quarta, sexta-feira e sábado. Tudo foi aceito
e executado. Tínhamos plena confiança, mas o Senhor nos atendeu, impondo-nos um
doloroso sacrifício. Digo, no entanto, “atendeu” pois, quando o bom Deus muda
assim o objeto de orações fervorosas, é porque tem desígnios secretos de
bondade e de misericórdia. Adoremos!
Na quarta-feira, dia 21, nosso Padre
Superior voltava de Angers a Chaville. Como capelão de Nossa Senhora da Salete,
misturou um pouco de água da Salete na poção de nosso amigo Girard, que a
aceitou de muito bom grado. Mas o Céu queria que tudo isso fosse apenas um
exercício de fé da parte do doente e da nossa. Na quinta-feira à noite, o Padre
Superior voltava a Vaugirard, após ter assegurado ao doente as orações de todos
os irmãos. Na sexta-feira cedo, o Sr. Tulasne, tão caridoso como sabem, teve um
longo colóquio com o Sr. Girard que lhe fez, em presença do Sr. Audrin, sua
confissão geral. Alguns remédios leves foram indicados, mas, ao sair de sua
visita, o médico declarou que era o fim e que o mal faria rápidos progressos.
Contávamos fazê-lo comungar à meia-noite, mas à tardinha, vendo que declinava
sempre, pensamos que era tempo de esclarecê-lo suavemente, mas na verdade,
sobre sua situação real. Até então, parecia desconhecê-la. Portanto, pelas
cinco horas, após ter conversado sobre isso com Nosso Senhor, abordei a grande
questão e lhe fiz a proposta, como irmão e amigo, de receber o quanto antes o
santo viático e a extrema unção, com a participação das orações e da presença
de toda a comunidade. Era, claramente, dizer-lhe que o bom Deus lhe pedia o
último sacrifício. Entendeu e, sem o menor sentimento de perturbação nem de
medo, nem mesmo de tristeza, recebeu a notícia de uma morte mais do que
provável. Entregando-se inteiramente ao que quereríamos fazer dele, aceitou
todas as disposições da Providência a seu respeito. Sete meses antes, numa
sexta-feira, festa das cinco pragas de Nosso Senhor, quando o Sr. Hello veio ao
Noviciado anunciar-lhe que devia partir para Roma, recebeu essa ordem sem se
comover e partiu. Foi a mesma coisa no anúncio de seu fim próximo. Não é que
não sentisse o que seu sacrifício tinha de penoso, sabem como amava a
Comunidade, como desejava ser padre, como teria sido feliz em retornar a Roma,
qual era seu zelo pelas obras, às quais havia votado toda a sua vida. Sua
família o queria bem, e todas essas esperanças que um coração tão generoso e
tão dedicado havia concebido para a glória de Deus e a salvação das almas! Tais
eram os objetos que se apresentavam ao seu pensamento. Entendi, através de sua
linguagem, que tinha consciência do grande sacrifício que o bom Deus lhe pedia,
mas que resignação! Caros amigos, que nobre tranqüilidade! Que confiança em
Deus sobretudo! Temia ter demais. Que entrega de todo seu ser a Deus! “Sou
inútil. Ah! O que somos nós, senão servos inúteis! No entanto, minha confiança
é sem limites: In te, Domine, speravi, non confundar in aeternum.” Eis o
que dizia e eu tinha, somente eu, a felicidade de ouvi-lo. Não é isso,
verdadeiramente, a recompensa que o bom Deus concede aos que tudo deixaram por
Ele, essa calma inalterável e essa confiança ilimitada face à morte! Possamos,
como ele, nos dedicar por nossos irmãos e merecer ter os mesmos sentimentos em
nossa última hora! Confessou-se e, como eu apressava um pouco, para não
cansá-lo, moderou minha pressa, para ter o tempo de tudo fazer bem; mas temia
que sua fraqueza prejudicasse o fervor de seu ato de contrição. Pelas seis
horas, recebeu a visita de Nosso Senhor, acompanhado dos noviços e dos
perseverantes.
Essa cerimônia foi muito
edificante. O doente respondeu a todas as orações, comungou, recebeu a extrema
unção e teve todo o tempo de saborear as palavras da santa liturgia, que
pronunciávamos, de propósito, com certa lentidão. O estado do doente o
permitia, e até, este desejava que nada fosse omitido.
À noite, chamou-me para me
perguntar se podia acrescentar algo a seu sacrifício, e me disse que oferecia a
Deus não somente sua vida, se lha pedisse, mas, além disso, seu bel prazer, a
continuação desse estado de aniquilamento e de completa impotência, no qual se
encontrava. “Entendi, meu caríssimo irmão, disse-lhe então, eis o seu
pensamento: Ofereço a Deus minha vida, se Ele a pede; ofereço-lhe meus
serviços, se Lhe agrada me devolver a saúde; ofereço-Lhe, enfim, meu estado de
incapacidade, se Ele deseja que continue.” “É isso, me disse.”
Caros amigos, o que desejar de mais
perfeito?
Admirável conformidade à vontade do
bom Mestre, eis o verdadeiro, o bom e fiel servo.
Na noite de sexta-feira para
sábado, quis ficar perto do amigo Girard com o Sr. Xavier. Recitei o ofício de
São Rafaël, onde só se fala de curas, e eu esperava sempre, até o último
momento. Nessa noite, teve dois ou três instantes de delírio. De manhã, às
4h30, hora do levantar da comunidade, perguntou-me como fazer para acordar de
uma maneira amável; disse-lhe então: “Benedicamos Domino”, e respondeu: “Deo
gratias”. Um pouco mais tarde, perguntei-lhe se queria ouvir a oração da
manhã; quis mesmo, e a recitei com o Sr. Audrin, que havia sucedido ao Sr.
Xavier. O bom irmão respondeu às ladainhas e à dezena de terço, quase como teria
feito em boa saúde. O Sr. Audrin propôs recitar-lhe as últimas orações. Eu o
fiz em francês e o doente fez sinal, em seguida, que tinha acompanhado tudo. A
vítima estava pronta, nosso amigo usava seu crucifixo e seus escapulários.
Despedi-me do bom irmão, dizendo-lhe que ia rezar a Santa Missa em sua
intenção. Não devia mais vê-lo de novo.
De resto, a partir desse momento,
não respondeu mais a nenhuma pergunta. Recomendei-o às orações antes do Santo
Sacrifício, e o colocamos sob a proteção de São Rafael, de quem era a festa.
Acrescentamos sua invocação às invocações costumeiras. O Sr. Xavier ficou junto
ao doente durante a missa. Ouviu algumas palavras sem nexo, e em seguida estas:
“Ah! Como é bela a Santa Virgem!... e o Menino-Jesus!... Era o delírio ou uma
graça que o bom Deus lhe concedia? Pelas 9h45, como eu estava na aula com os
perseverantes, o Sr. Xavier veio me anunciar os últimos momentos. Corri, mas
como chegava, o Sr. Audrin, que havia ficado junto a ele, acabava de receber os
últimos suspiros de nosso excelente irmão Girard. Um leve movimento do lábio
inferior me indicou que tudo havia terminado. Assim, portanto, sem agonia
alguma, havia entregue tranqüilamente sua alma a Deus, num sábado, dia da Santa
Virgem, na festa do glorioso arcanjo São Rafael! Não era conveniente que o
Diretor de sua Obra entrasse na bem-aventurada eternidade sob os auspícios de
São Miguel e de São Rafael? Mais uma vez, meus caríssimos irmãos, bendigamos ao
Senhor em tudo o que nos acontece. Tenho a confiança de que, se trabalharmos
seriamente a tornarmo-nos santos, veremos, após a prova, abundar as consolações
e os frutos na Comunidade e nas obras.
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