Impressões do Sr. Le Prevost sobre os
acontecimentos de 1830. Sua necessidade de perfeição. Vida cultural. Relações
de amizade. Julgamento sobre V. Hugo. avènement
Paris,
17 de agosto de 1830
Esta folha, de qualquer jeito, devia ser sua, meu caro Victor. Teria sido
escrita, mesmo se a sua tivesse demorado um dia a mais. Será uma
resposta, já que é posterior. Que comece logo agradecendo o interesse
afetuoso e terno que você me testemunha. Não saberia dizer o quanto fico
sensível, o quanto as lembranças que você me traz através desses grandes
eventos3 me parecem preciosas. Por que
não me detinha, meu amigo, no momento em que você corria para Babilônia? Por
fraco e lerdo que eu fosse, o teria seguido de todo o coração e você teria
quebrado de uma só vez todos os nós que eu não sabia desembaraçar em minha
consciência. Seu entusiasmo, guia bem mais seguro para mim que minha própria
razão, me teria arrastado sem dificuldade até lá, reconheço. Aprovando esforços
justos e generosos, perguntava se as massas comovidas iam depois se acalmar
pacificamente, se todos esses homens, heróis hoje, aceitariam retomar o
martelo, talhar a pedra com golpes calculados, combinar lentamente letras nos
compartimentos da gráfica. Este sangue que fervia em suas veias ia tão depressa
se acalmar? Chegados ao objetivo, não iriam transbordar bem mais longe. Uma
nobre confiança era bem maior e sobretudo mais justa, mas eu não a sentia.
Vendo que você a tinha, meu amigo, eu a teria compartilhado. Com efeito, falo
com você, apenas para dizer em alta voz a alguém e também para que você
conserve minha bela imagem sem alterar sua pureza ideal, para que permaneça
sempre intacta diante de meus olhos, como prova de que tudo que se sonha às
vezes de nobre, de generoso, de espontâneo para o bem, qualquer que seja,
existe verdadeiramente em algum homem de nossa terra. Não saberia mais
completar o que queria dizer. Não me sinto mais bastante forte em meu propósito
para estar certo de que corresponderia à realidade. Chega, portanto. No
entanto, se, através de tudo isso você entrevê, meu amigo, uma opinião talvez
exagerada de você, queira atribuí-la somente a essa necessidade de perfeição
que nos persegue, que é preciso satisfazer não importa sobre o quê e que nos
apega avidamente aos menores rastros que dela encontramos. Estes últimos
tempos, aliás, puderam dar boa oportunidade a tal disposição; oh! como partilho
muito sua admiração pelos homens e pelas coisas! Quando os povos exprimem assim
suas emoções, como seus aspectos, seus grupos, suas agitações ondulosas, são um
imponente espetáculo! Que vastas aberturas para a razão e a filosofia! Mas não
lhe parece que a força física, quando chega a uma tal potência e uma tal
moderação de si mesma, quase se funde com a força moral e que chegou ao momento
de se retirar totalmente para ceder-lhe o lugar para sempre?
Tudo volta ao normal aqui, se modifica sem esforço, entramos na ordem habitual.
A preocupação com os acontecimentos cessa aos poucos, os lazeres voltam, a alma
recomeça a deixar este mundo onde nada mais a segura e volta a seus sonhos. As
letras, os cantos, a poesia, tudo isso reaparece, o teatro está novamente
cheio. Não parecia que nunca mais tais coisas aconteceriam? De fato, somos como
que movidos à mola, dobramo-nos um momento sob as circunstâncias e nos
reerguemos em seguida, voltando à nossa posição ordinária. Eu mesmo, anteontem,
estava na Ópera, e o Comte Ory4,
Nourrit, Madame Damoreau, Taglioni me deram impressões de arte mais autênticas,
mais vivas do que nunca. Você não conseguiria, meu amigo, ter uma idéia
sobre La Marseillaise, cantada por Nourrit com os coros e a
orquestra e repetida pela assembléia! Se houve em tudo isso o menor frenesi, ou
até uma exaltação demasiadamente enérgica, suscitando lembranças sangrentas, só
me teria deixado horror e pavor. Mas, represente-se ao contrário o
conjunto bem e puramente na arte, sem dela sair nem pela encenação, nem pelo
efeito, encontrando nas simpatias do dia apenas uma disposição mais
delicada e melhor informada, e talvez você chegue, enquanto se pode, tão
friamente e pelo pensamento, ter alguma idéia sobre o fato. Teria ficado
feliz se você estivesse ali perto de mim. Pensei muito nisso. Não deixe, meu
amigo, quando, por sua vez, encontrar vivas impressões em seus campos ou
alhures, de me convidar também para lá e de me fazer partilhar contigo algo
disso. Oh! tenha a certeza de toda a minha simpatia, tenha a certeza de ser
compreendido por mim, não importa o que faça ou diga, tenho por você ao mesmo
tempo a compreensão e o sentimento.
Esta carta começa a ser tão comprida que não ouso mais prolongá-la; no entanto,
ainda, meu amigo, tinha previsto seus desejos. Tinha ido visitar o Sr.
Hugo5 no fim da semana passada. Ele
havia saído, encontrei somente sua esposa grávida, perto de seus filhos e
consertando-lhes as meias. Todo esse mundo vai bem. O Sr. Hugo partilha as
idéias do dia, mas está decidido a não aceitar função de qualquer tipo e bem
mais ainda a não procurá-las. Fala-se de Marion de Lorme, ela será apresentada, mas somente no decorrer do
inverno. Você estará presente. Eu via, nestes dias passados, uma pequena carta
de Henri IV assim escrita, dirigida não sei mais a quem: “Amigo, preciso de seu
braço, prepare-se, esteja tal dia, em tal lugar, muita gente aí morrerá”.
Imagino, meu amigo, que se o Sr. Hugo fizesse a representação na sua ausência,
não deixaria de chamá-lo por uma linguagem desse tipo. Voltarei a visitá-lo,
primeiro por mim e por você também. Acho que se pode resistir aos desejos,
quando um amigo está presente, mas não em sua ausência.
Adeus, caro amigo, amo você tão sinceramente quanto é possível. Eu preciso
também de sua parte, entendamo-nos bem, não de uma porção desse interesse
generoso e bom que você concede a todos os que o rodeiam, mas sim dessa pura e
verdadeira amizade, escondida no fundo, bem no fundo de sua alma e da qual se
dá pouco e a pouca gente. Somente isso, meu amigo, pode me satisfazer e
responder a todos os meus sentimentos por você.
Léon
Le Prevost
Faça de mim seu homem de negócios aqui, durante sua ausência. Tenho para isso
tudo o que é preciso, capacidade e boa vontade.
O Sr. Gavard vai bem e sua gente com ele; deve ter-lhe escrito. Haviam
arrombado a porta da sua casa que ele tinha abandonado, para
procurarem infelizes Guardas reais, que achavam estarem ali escondidos,
mas não mexeram em nada na casa. Ele está ao menos em condição de lidar
com os assuntos do momento. Limita-se, porém, a agir com bom
senso, quase nada além disso. Muitas vezes temos falado de você, com exceção do
futuro.
O Sr. Mazure virá? Teria tanto prazer em revê-lo! Tinha começado a lhe escrever
depois dos acontecimentos, para contá-los e tranqüilizá-lo a respeito de você e
de todos nós, mas é impossível acabar logo a carta, que tinha,
acho, muitas linhas já escritas.
O Sr. Trébuchet6 ficou no seu lugar e aí continuará, espero. Será que é
tudo? Os artigos7? Envio um com esta carta. Eu o resumi bastante,
o encurtei. Se fosse seguir minha apreciação, um traço de pena lhe daria
justiça. Se você o pegar, vou me esforçar para que a seqüência seja menos ruim.
Deixá-la-ei mais tarde na casa de seu correspondente, cujo número anotarei na
casa de sua Senhora.
(Léon)
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