Na vida comum não são
as alegrias humanas que encontramos, mas uma vida séria, feita de oração e de
abnegação. O Sr. Le Prevost encoraja seu “único irmão”, confidenciando-lhe suas
próprias provações: ele mesmo está privado de toda consolação interior e de
todo atrativo pela piedade. Mas tem consciência de que nisso se encontra
um progresso espiritual. Descrição da vida que leva na Normandia.
Saint-Valéry,
19 de junho de 1846
Meu caríssimo irmão,
Você me prometeu ficar um pouco com saudade por minha ausência; espero que
tenha sido fiel à sua palavra e que a privação do único irmão que Deus lhe deu
até agora se fez sentir para você em alguns momentos. Espero-o, por causa
de sua caridade, mais do que por qualquer outra causa, pois, no estado de
langor corporal e espiritual a que me sinto reduzido, estou vendo que não posso
servir muito nem para edificá-lo nem para consolá-lo. Essa situação, caro
amigo, que ambos temos de sofrer é, creio, toda providencial. Não aprouve ao
Senhor que, na nossa entrada na vida comum, fôssemos sustentados por atrativo
sensível algum, a fim de fazer-nos entender que não é uma carreira doce e
cômoda que abraçamos, que não se deve procurar nela nem os apoios das simpatias
humanas, nem as alegrias de sentimento, mas um hábito de vida grave e séria, um
caminho de trabalho, de oração e de abnegação. Aceito-o, da minha parte, em
tais condições e, embora me pareça um pouco árido e um pouco duro, creio-o
verdadeiramente no espírito de Deus. Há vinte anos, aspiro à vida de inteiro
sacrifício a Deus em união com algumas almas animadas também pela necessidade
de abandonar tudo a Ele. E, agora que estou tocando nisso enfim, que tomo posse
deste bem tão desejado, as alegrias espirituais que me faziam chorar por
antecipação, as delícias da oração e da contemplação, o recolhimento, a
presença de Deus, os santos ardores das almas edificadas e estimuladas uma pela
outra, tudo isso se desvaneceu. Acho-me, como diz a Escritura, numa terra árida
e sem água, esgotado de corpo, sem vida no coração, sem luz no espírito.
Algumas queixas, caro amigo, que o ouço fazer deixam-me pensar que Deus o prova
mais ou menos do mesmo jeito e que seu caminho é rude e áspero como o meu. Não
nos aflijamos com isso, caro irmão, e deixemo-nos conduzir pela mão toda sábia
e toda paterna de nosso Deus. Lembro-me que, antigamente, minhas orações
resumiam-se, nos seus doces fervores, em oferecer-me todo a Deus para seu
serviço e para todas as obras que lhe prezasse confiar-me. Hoje, elas não são
muito mais do que um consentimento passivo à ação mortificante que ele exerce
em todo o meu ser. Consinto em deixá-lo agir e em sentir-me sucessivamente, e
nos pontos mais íntimos, ferido de esterilidade e de morte. Ouso esperar que
este estado seja melhor que o primeiro e contenha um progresso espiritual; acho
então nele, de algum modo, uma certa alegria severa e calma que não é sem
confiança e sem suavidade. Possa você, caro amigo, inclinar também seu espírito
para este sentido; então, eu me encontrarei ainda mais tranqüilo e mais
resignado, pensando que você quer bondosamente me acolher tal como o Senhor me
faz, confiando em seu amor para tirar de mim mais serviço e consolação, quando
o momento tiver chegado.
Tenho bem poucas coisas a dizer-lhe sobre a minha viagem que se desenrolou
maravilhosamente, sem excesso de calor nem de poeira. A região em que
estamos143 é encantadora sob todos os aspectos: o mar é admirável, o
céu esplêndido e os campos deliciosos. Os moradores participam desses dons
felizes da natureza. São piedosos, simples, cordiais, de modo nenhum curiosos e
dão atenção a nós, somente para prestar-nos algum serviço quando precisamos. Já
tomei quatro banhos, um a cada dia; a água é perfeitamente boa e agradável; só
que, nestes dois últimos dias, as ondas eram tão fortes que me bateram
fortemente demais, a mim que sou fraco e débil; estava moído e tão quebrado que
mal conseguia me soerguer; de noite, meus nervos demasiadamente sacudidos
estavam em agitação contínua; via sem cessar essas enormes montanhas de água
erguerem-se mugindo e desabarem sobre mim com estrondo; a prova era rude demais
para minha fraqueza e não teria sido, creio eu, salutar. Hoje, mudando de
horário, achamos o mar suave e clemente; penso que, indo assim, será
proveitoso para mim de certa forma. Todos os dias, antes de ir ao banho, entro
numa pequena capela, que está à nossa porta e quase na praia; ali recito a Ave maris Stella e me ofereço a Deus para sarar, sofrer ou
morrer, de acordo com sua sabedoria e seu amor.
Apresente-me, caro amigo, à lembrança de todos os nossos bons amigos, os Srs.
Deslandes, Boutron, Roudé em particular, depois, o excelente Sr. Fossin, cuja
família foi cheia de cordialidade e de bondade para nós; em seguida, o irmão
Paillé144 que virá, espero, se juntar a nós pelo fim deste mês no mais
tardar; depois, o Sr. Nimier, o Sr. Georges [de La Rochefoucauld] e
todos os outros tão bons, tão dedicados que freqüentam diariamente a Casa. Escrevo
uma palavra ao Sr. Maignen, não bastante amável para conosco há algum tempo,
mas que, no entanto, me é bem caro sempre. Adeus, querido irmão, rezo todos os
dias por você na Santa Missa e em outros momentos ainda; lembre-se também de
mim e esforce-se para que suas orações me tornem tal como sua caridade e sua
terna afeição me podem desejar.
Abraço-o bem cordialmente e sou para a vida em N.S.
Seu irmão devotado
Le Prevost
O Sr. Taillandier, cujo acompanhamento me é de grande auxílio e a caridade bem
doce, apresenta-se à sua boa lembrança; pede mencioná-lo perto de todos os
nossos amigos.
Em São Valéry-em-Caux, no Grande Hotel dos Banhos
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