Papel da secura
espiritual na vida interior. Deus a permite para que percebamos nossa miséria;
nosso trabalho consiste em deixar que sejamos modelados. Providências
caridosas. Lenda do bispo construtor. Inabalável constância: “guardar a letra
de nosso regulamento, o espírito voltará”.
27 de junho
[1846] - São Valéry-em-Caux
Grande
Hotel dos Banhos
Meu caríssimo irmão,
Você me parece de uma severidade muito exagerada para consigo e está pedindo
rápido demais, parece-me, à sua pobre alma para que chegue à perfeição à qual
aspira. Não é também aumentar demais as coisas ver, em sua vida toda
consagrada à oração e às obras santas, faltas graves que podem alarmar seu
coração? Se fosse assim, caro amigo, eu teria visto alguma coisa, eu que, desde
sua chegada aqui, quase não o deixei e que partilho agora sua morada e ando
lado a lado com você. Tranqüilize-se, caro irmão, só vi em você algo simples,
reto e bom, e, de minha parte, tenho a convicção de que, longe de ter
recuado no bom caminho, você avançou corajosamente e num compasso contínuo.
Nosso erro sobre nossas disposições vem ordinariamente, caro amigo, do fato de
não levarmos bastante em conta as circunstâncias diferentes em que nos achamos;
em certos momentos, estivemos cheios de ardor, firmes nas regras que nos
tínhamos imposto, prestes a tudo sofrer, a tudo empreender para o serviço do
Senhor. Este estado feliz regozija nosso coração, enche-nos de esperança e
parece-nos o caminho de perfeição. Acho, todavia, que não é nada disso, que se
está aí somente nos primeiros passos da carreira e no tratamento da infância.
Avançando, Deus, cujo ardor nos sustentava, se retira; sua luz não mais ilumina
nosso espírito; achamo-nos em presença de nossas fraquezas, de nossa impotência
e de todas as misérias de nossa natureza. Somos mornos e quase maus; o
amor-próprio mistura-se às nossas intenções, e a mistura estraga também a
pureza de nossas afeições; rezamos sem gosto e com tédio; não temos na oração
nem pensamentos, nem sentimentos, nem ardor para as resoluções; enfim, nossas
obras também são mornas e sem vida, infrutíferas para os outros, vazias e
cansativas para nós. Será que você está neste ponto, meu caríssimo irmão? Se
você ainda não está neste estágio, estou na sua frente e posso estender-lhe a
mão para alcançar-me, porque você chegará lá; se você está mais abatido, mais
triste e mais débil ainda, pertence a você me atrair, porque você está na minha
frente. Sim, caro amigo, estou convencido de que é preciso passar por este
triste caminho, sentir, por nossas deficiências, nossos passos em falso, nossas
quedas talvez, nossa miséria, nosso nada. Mas estou certo ao mesmo tempo de que
esse estado de desolação e de impotência é melhor do que o primeiro, onde
estávamos firmes, fervorosos, generosos pelo coração e fecundos pelas obras.
Deus estava em nós então, animava nosso espírito, guiava nossos passos,
sustentava nossa mão; hoje, ele nos olha agir, como uma mãe segue os primeiros
passos de sua criança, vê sua fraqueza, prevê suas quedas, mas a deixa fazer
para que aprenda a andar. Quando, há alguns meses atrás, antes do nosso pequeno
retiro, você parecia triste e falava de ir recolher-se em Angers: o Sr.
Beaussier sorriu somente e disse-me: “Você e ele verão muitas outras coisas.” O
Sr. de Malet, meu piedoso e santo diretor de outrora, tinha-me advertido também
disso, dizendo: “Você tem um pouco de ciência, de fé, de caridade, de
dedicação; saiba bem que virá a hora em que você não terá mais nada: a tepidez,
a secura, as trevas e as quedas serão seu quinhão, e você estará sozinho em vez
de estarem em dois, como hoje, Deus e você; não haverá mais senão você, e você
entenderá então o que você é.” Essa hora parece ter chegado, caro amigo;
agarremo-nos bem, portanto, aconcheguemo-nos um no outro, guardemos a letra de
nossas práticas e de nosso pequeno regulamento; o espírito voltará, a luz
iluminará de novo nosso pensamento, nosso coração sentirá ainda a suave
caridade à qual se dedicou e consagrou todo inteiro. Eis aí minha esperança,
caro amigo; aceite-a você mesmo, não considere seu isolamento como a
decadência, alguns relaxamentos, molezas e desgostos como faltas graves, nem
mesmo algumas faltas como sinais de deserção; nesse estado, Deus trata-nos com
uma imensa indulgência; se tropeçamos, não presta atenção nisso, e se caímos,
ele nos levanta, bate a poeira, tira a lama e nos recoloca no caminho. Eis
tudo. Hoje sou eu, caro amigo, a parecer decidido e apresentando não duvidar de
nada; amanhã, será sua vez, pois, vinte vezes por dia, tenho também minhas
falhas e meus desânimos. Mas, apoiados um no outro, nos apoiando
alternativamente, rezando juntos ou gemendo juntos, ganharemos terreno, e nos
acharemos, espero, num solo mais firme e num ar mais livre.
Quando estiver de volta, caro irmão, se o bom Deus me devolver um pouco de
saúde, esforçar-me-ei por edificá-lo melhor. Compreendo bem que o estado em que
você me vê de corpo e de espírito não contribui pouco ao seu desânimo, mas, meu
querido irmão, você não terá deixado, com uma indulgente compaixão, de pensar
que sofro com isso ainda mais do que você, tendo ao mesmo tempo o peso e a
humilhação esmagadora dessas enfermidades. As considero, de resto, como uma das
rudes provações que devíamos prever e aprazo-me em ver nelas um testemunho da
presença e da ação de Deus em nossa obra. Li, estes dias, uma pequena lenda
dizendo que o Senhor ordenou a um piedoso Bispo, não sei mais qual é, que lhe
erguesse uma igreja magnífica em um local marcado. O Bispo pôs mãos à obra e
construiu, à grande custa, o edifício, mas este ainda não estava concluído
quando os muros desmoronaram; foram reerguidos, caíram de novo; mas o santo
tendo perseverado, ergueu enfim um templo admirável, onde o Senhor comprouve-se
em derramar sobre todos as suas bênçãos.
Essa será, espero, caro amigo, nossa história, mas é preciso perseverarmos
obstinadamente em nosso desígnio, não desanimarmos nem pelas dificuldades, nem
sobretudo pelas nossas imperfeições; somos os instrumentos de Deus: se Ele não
nos achar tais como Ele nos quer, que nos talhe, nos martele e nos corrija ao
seu agrado; ouso dizer que isso é seu papel, o nosso é deixar que nos modele,
sermos dóceis e só cedermos no caso em que, bem evidentemente, bem
certamente, Ele nos rejeitar e se recusar a servir-se de nós. Eis o meu
pensamento, caro amigo, ele será também o seu, porque só comporta a
desconfiança de nós mesmos com a absoluta confiança nas misericórdias e no amor
de nosso Deus.
Recebi, como você diz, uma carta do Sr. Maignen, mas não me fala da
Conferência, nem do patronato. Sua carta é somente uma longa queixa contra mim,
contra minhas exigências excessivas e o exagero de meus conselhos a seu
respeito. Mereço em parte essas censuras, embora minha intenção tenha sido boa;
minha afeição por ele, por cristã que fosse, era excessiva e por isso devia ter
seu castigo; por outro lado, não levei bastante em conta suas inclinações
naturais e, tentando pôr um pouco de regularidade em seus hábitos, encostei
rudemente demais a mão num ponto fraco que era para ser poupado. Espero, no
entanto, que essa irritação seja passageira e que seu coração nos ficará.
Peço-lhe, caro amigo, não lhe falar desses pequenos desentendimentos; o bom
Deus, melhor do que nós, os consertará com sua doce e insinuante caridade.
Escrevo uma carta, que junto aqui, para pedir ao Sr. padre Duquesnay que vá a
Angers para o dia 19 de julho. Seria preciso, caro amigo, por amor a sua
Conferência de Angers, levar esta carta, você mesmo, ao Sr. Duquesnay, que se
encontra de manhã antes do meio-dia. Você o encontrará, acho, indo logo após a
missa, de manhã. Se conseguisse uma resposta favorável, você deveria, caro
irmão, escrever sobre isso ao Pavie, que combinaria com você a saída do Sr.
Duquesnay. Caso contrário, a incumbência voltaria ainda a você, meu pobre
irmão, de ver o Sr. Ratisbonne145, o Sr. Lacarrière cujo endereço lhe
dirão nos Carmos, enfim os Jesuítas que talvez concederiam o padre
Humphry ou o padre Marquet. Creio que eles não conviriam plenamente em Angers,
mas, com certeza, eles têm um talento incontestável. O mais conveniente seria,
acho, o Sr. Duquesnay; empenhe-se, portanto, da melhor forma para tê-lo.
Vou escrever ainda a Victor para dizer-lhe que minha ausência deixa repousar
esse assunto, em grande parte, sobre você. Se você tiver êxito, avise-me
depressa. Poderia escrever ao Sr. Levassor, para perguntar-lhe como ele
combinou ultimamente, em caso semelhante, com o Sr. Duquesnay sobre as despesas
de viagem ou outras; talvez, também, se poderia simplesmente saber a opinião do
Sr. padre Goujon, na sacristia de São Sulpício.
Não me havia preocupado em dizer-lhe para abrir minhas cartas: já que tudo
pusemos em comum, a recomendação era inútil. Peço-lhe para tirar, sobre os 200f recebidos, o preço do
porte, mais 115f
que depositará na Caixa de nossa Comunidade e reservar o resto que não me
pertence.
Apresente-me de novo à lembrança de nossos muito queridos Confrades, em
particular os que, bondosamente, querem tomar sobre si meu trabalho junto com o
seu: os Srs. Deslandes, Boutron, Roudé, Granger; desejo também que você faça um
pequeno mémento particular ao Sr. de Malartie, cuja bondade e
inesgotável boa vontade fazem minha alegria e minha edificação ao mesmo tempo.
Não esqueça, enfim, outros que me são igualmente caros: os Srs. Nimier,
Georges, Planchat, Leleu146, todos, não sei parar, pois tenho-os a
todos em minha afeição. Levarei ao excelente Sr. Fossin notícias de sua família;
escrevi ao Sr. Paillé, penso que vai chegar logo. Enfim, diga uma palavra ao
bom Odulphe que recomendo também ao bom Deus em minhas orações.
Aumento seus trabalhos, caro amigo, dando-lhe um tal volume a ler, mas não pude
fazer de outro jeito. Minha saúde está pouco forte ainda, mas se ela não
voltar, exercerá sua paciência, caro amigo, será talvez esse o desígnio
de Deus. Abraço-o com ternura, caro irmão, no Coração desse divino Mestre que
nos aproximou um do outro e que nos unirá em seu amor.
Seu em J. e M.
Le Prevost
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