Incompreensão da
família Maignen: Deus e os pobres não precisam nem de ouro nem de prata, mas de
“seu coração, de sua vontade, de você mesmo”. Por que o Sr. Le Prevost o
aconselha a renunciar ao sacerdócio. Entrar no espírito de paciência e de
espera de São Vicente de Paulo.
Paris, 18
de setembro de 1846
Cheguei aqui, caríssimo irmão, quarta-feira como lhe tinha anunciado. Não
preciso dizer-lhe que tornei a ver com alegria nosso excelente irmão Myionnet;
você sabe quais os sentimentos que nos unem e o quanto nossa pequena família,
até aqui tão pouco numerosa, sente a necessidade de fortalecer-se no exercício
da vida comum. Esse bom irmão quis bondosamente me acolher também, como se eu
valesse algo para ele, tanto é verdade que não são nem as grandes qualidades,
nem as vantagens de tipo algum que prendem os homens um ao outro, mas, sim, a
retidão do coração, o entrosamento das vontades e, acima de tudo, a inspiração
divina da caridade.
Você entende sem dificuldade, caro filho, que bem depressa se encontrou como
uma terceira pessoa conosco e que estava por demais presente em nosso
pensamento, para que nosso primeiro movimento não tenha sido orientado para
você. O jovem irmão foi, então, desde o início, o objeto de nossas ternas
preocupações e de nossa mais cara solicitude. Falamos muito longamente sobre o
que lhe diz respeito e temos rezado também bem ardentemente por ele. Não era
difícil ficarmos de acordo no ponto principal, você é querido demais por nós,
caro amigo, e seus sentimentos são simpáticos demais aos nossos, para que nosso
coração não se abrisse inteiro quando você pede um espaço mais amplo e
mais íntimo ainda do que no passado. Só precisávamos procurar o que tínhamos a
fazer no atual estado das coisas, para conciliar, ao mesmo tempo, seu interesse
particular, o de nossa obra e também o de sua querida família. Penso como você
que, para dizer a verdade, todos esses interesses formam um só, e mais cedo ou
mais tarde cada um o reconhecerá. Mas essa hora não chegou e, enquanto
isso, temos que ponderar bastante. A mansidão e a persuasão junto com uma
firme vontade são os únicos meios que convêm para você e para nós usarmos. É
preciso usá-los, como você já fez, a fim de esclarecer melhor, se se pode, a
opinião de seus familiares. Não julgando nada senão do ponto de vista humano,
considerando como sonho e desoladora ilusão os sentimentos de abnegação e de
dedicação que o fazem agir, ficam, sobretudo, irritados pelo fato de você não
aspirar, pelo menos, ao sacerdócio que lhe asseguraria ainda uma posição
respeitável. Ficam feridos ainda mais por isto: vivendo em comum e não tendo
mais nada que nos seja próprio, não recebemos nada de você, a não ser sua
juventude, seu trabalho, o sacrifício de si mesmo, de sua família e de sua
posição. Cegos por um amor próprio que não sabe mais apreciar nada com justiça,
eles achariam a condição melhor se, em lugar de tudo isso, você tivesse um
pouco de dinheiro a oferecer; não compreendem que, aos nossos olhos, o dinheiro
não tem nenhum valor, pois não faríamos nada com ele. Mas aquilo de que
precisamos, nós, antes de tudo e quase exclusivamente, é o que você traz, caro
filho, nobre e generosamente, não um pouco de ouro, algumas roupas ou
utensílios, mas seu coração, sua vontade, seus cuidados, seu pensamento, numa
palavra, você mesmo. É disso que Deus e os pobres estão precisando, é também o
que procuramos, nós, que aspiramos a servi-los. Não adianta muito esperar, caro
amigo, que os pontos de vista de sua família possam ser mudados nesse ponto,
mas você poderia, parece-me, mesmo entrando em suas idéias, oferecer-lhe alguns
motivos que não seriam sem valor. Primeiro, o Sr. Myionnet compromete-se, para
dar satisfação às suscetibilidades de amor próprio, em obter para a Casa das
crianças um título de Vice-Diretor ou outro, ao qual seriam ligados, pela
Sociedade de São Vicente de Paulo, honorários, ao menos de setecentos ou
oitocentos francos ao menos; sua posição seria, portanto, entre nós muito
independente e humanamente inatacável. Por outro lado, no que diz respeito à
escolha que você está fazendo entre os diversos caminhos que se ofereciam a
você, sua família não presta bastante atenção no fato de que a decisão em que
você se fixa é para ela a melhor e a mais satisfatória de todas. Sem falar das
dificuldades, para não dizer das impossibilidades que haveria para você em
começar, na sua idade, a fazer estudos, a fazer depois os anos de Teologia, sem
meios para a sua subsistência e sua manutenção, durante um período de cinco ou
seis anos pelo menos. Que pesares não teriam os seus familiares se, mais tarde,
você não fosse perseverar; se chegasse, após ter entrado no seminário, ter
vestido o hábito eclesiástico, a decepcionar-se com as dificuldades, a mudar de
opinião ao menos e a voltar para o mundo, você só encontraria ali embaraço e
desânimo.
Conosco, ao contrário,
uma provação de um ano não ocasiona conseqüência nenhuma para seu futuro, não
faz nenhum estrondo, não o separa do mundo por nenhuma distinção aparente e
decisiva. Enfim, seus familiares não pensam também que, querendo decididamente
consagrar-se a Deus, você poderia, como me declarou a mim mesmo, colocar entre
os seus e você uma barreira intransponível entrando na ordem de São João de
Deus, nos Franciscanos, nos Jesuítas ou num outro lugar. Apresente todos esses
motivos à sua família, caro amigo, com afeição e firmeza ao mesmo tempo, e você
fará, espero, alguma impressão nos seus espíritos. A coisa seria simples e bem
provável, se você tivesse que lidar só com sua excelente mãe e seu irmão.
Esclarecidos pelo instinto de uma terna afeição, entenderiam logo que há aí
algo justo e verdadeiro e que aqueles que o amam deveriam estar felizes
com a decisão sábia e toda transitória que você toma. Mas, você entende, os
conselhos que recebem os exaltam e irritam, sofrem o contra-golpe das paixões
que as coisas de religião levantam em certos corações e agem sob uma inspiração
que não lhes é própria. No entanto, com um pouco de tempo e de paciência, a
calma voltará, creio, em suas almas, a afeição vencerá, e sua causa será ganha.
Seu irmão veio à casa no mesmo dia da chegada de sua carta; o Sr. Myionnet não
lhe escondeu que você estava em Chartres, sem dar-lhe, porém, precisamente seu endereço,
que não pediu; a Senhora sua mãe (isto é um segredo de que você não deve
apresentar ser conhecedor) foi visitar o Sr. Beaussier e não rejeitou
absolutamente suas razões, sem, no entanto, mostrar-se inteiramente atingida
por elas. As informações que temos recebido assim constantemente sobre as
disposições de sua família tornaram inútil a visita que você tinha pedido para
os Srs. Turqui e Desquibes. O Sr. Beaussier pensa que você agirá com sabedoria
evitando incluí-lo muito no assunto: ignora-se entre os seus que ele seja
o Diretor da Casa; enquanto ele é considerado somente como seu confessor, a
posição dele é melhor. Ele deseja também que sua família esteja bem convencida
de que você agiu fora de toda inspiração exterior e que ninguém de nós o aconselhou,
mesmo indiretamente. Asseguram-me que todas as iras caem sobre mim, fico feliz
por isso no pensamento de que ninguém mais do que eu está disposto a sofrer
alguma coisa por você, se precisa, caríssimo filho. Mas acho que, uma vez
passado o primeiro momento de surpresa e de dor, se está hoje com melhores
disposições. Teria ficado feliz por ver sua boa mãe e seu irmão, acho que
minhas explicações os teriam esclarecido talvez um pouco, mas não posso sonhar
em ir visitá-los; acolhê-los-ei tão bem como puder, se acharem que devem pedir
para me ver. Eis aí, caro amigo, a situação atual, podia ter deixado de
fornecer esses longos pormenores, pois o Sr. Myionnet partirá para Chartres
segunda ou terça-feira, a fim de vê-lo e de examinar com você se podem fazer juntos
um pouco de retiro. Tudo isso irá ganhar tempo e servirá seus negócios. Os Srs.
Beaussier e Myionnet pensaram que havia uma grande vantagem, os corações só
podendo acalmar-se cada vez mais com o tempo e chegar a pensamentos de
conciliação. Entramos, aliás, assim, desde o início, no espírito de paciência e
de suave espera de nosso Santo Padroeiro, que nunca quis nada precipitar.
Quanto mais sua decisão tiver sido livre, refletida, firme em superar os
obstáculos, tanto mais valor terá diante de Deus e de seus próprios
olhos.
O Sr. Myionnet cuidou com muito interesse de seu pobre Gabriel; falará com você
a respeito..
Diga-me, caro amigo, por favor, o endereço do Sr. Levassor a quem precisarei
escrever; ele está sendo esperado em breve?
Eis meu papel, meu tempo e também minhas forças, usados para dar-lhe, caro
amigo, todos esses pormenores sérios e necessários e não tenho mais como
responder às doces efusões, às ternas expansões de sua última carta. Não estou
menos comovido por isso, caro filho, continue assim a derramar todo o seu
coração no meu e tenha certeza de que nada me escapa e me é indiferente; você
bem sabe que, desde há muito, tínhamos, um para o outro, tirado as portas de
nossas almas: a minha fica aberta para você, entre em qualquer hora para pouco
ou para muito, não tem importância, você será sempre bem-vindo.
Adeus, caro filho. Ontem, os Srs. Myionnet, Nimier e eu rezamos juntos duas
dezenas de terço, uma foi expressamente rezada por você. Nossa Santíssima Mãe
terá visto os ternos desejos de nossos corações e, purificando-os no seu, os
terá, tenho confiança, depositado aos pés do Senhor. Abraçamos a você com
ternura, eu um pouco mais fortemente que os outros.
Seu irmão e amigo em N.S.
Le Prevost
Boas e afetuosas lembranças ao Sr. Mayer.
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