Desculpas por ter aberto uma carta de V. Pavie
a seu amigo comum, Mazure. Visita aos Hugos. A repulsão que lhe inspiram os
revolucionários. Teme a volta de motins sangrentos. Sainte-Beuve e a evolução
do Globe.
25 de outubro de 1830
Mesmo correndo o risco, meu amigo, de multiplicar sua saudade pela
minha, vou tentar lhe escrever. Aliás, tenho que lhe responder por duas cartas;
pois, a que você manda a meu endereço para o Sr. Mazure, acabo de abri-la por
engano e, de linha em linha, a falta se consumiu até o fim. Li a carta inteira;
teria ficado bem embaraçado se, em algum recanto, tivesse encontrado o castigo
de minha indiscrição; mas parece que você previu a aventura; não há nada na
carta que não seja amigável e afetuoso. Obrigado. O Sr. Mazure terá sua carta
somente daqui a dois ou três dias, qualquer que seja a pressa que use em lha
mandar, pois, no momento em que lhe falo, ele, do alto da cátedra de filosofia
de Poitiers, ensinando e dogmatizando, perde sem dúvida a terra de vista, vaga
nas nuvens do objetivo, ou torna a descer ao subjetivo. Vou dar um jeito para
que, à sua volta, encontre sua carta sobre seu púlpito de professor. Você não
percorreu o Moniteur há oito dias. Você teria visto sua exaltação. Eu mesmo
ainda não parei de sentir a alegria que isso me proporcionou: desde tantos
anos, vejo-o arrastando sua vida em uma posição mais do que precária, não
ousando sentar-se em lugar nenhum, porque daqui a pouco será preciso partir,
que tenho a impressão de parar, enfim, junto com ele e retomar o fôlego após uma
corrida exaustiva de tristeza e de cansaço. Você que o ama como eu, ficará bem
feliz também. Estou roubando Mazure ao comunicar-lhe essa boa notícia, mas ele
lha transmitirá uma segunda vez e assim não perderá nada com isso. O Sr.
David10 contribuiu a esse feliz resultado por seu empenho junto a
Cousin.
Ainda tenho neste momento uma coisa que me
deixa com calor e agilidade nas pernas, para vários dias. Ontem, sozinho,
somente com os sofás e as cadeiras, e os quadros, e os desenhos, e os esboços,
no gabinete do Sr. Hugo, eu conversei duas horas com o Sr. Hugo, brinquei com
as crianças e tagarelei com Madame, e quando saí, ele me apertou a mão.
Ela levantou-se e me fez dessas reverências simples e desajeitadas que me
encantam, tais como só ela e a Sra. Malibran sabem fazer, e que para mim contêm
todas as idéias, todos os mundos que Vestris11 via nas profundezas de
um passo de dança. Meu amigo, não estou feliz?
Teria vergonha, meu amigo, de mostrar tanta
leviandade diante de nossos graves acontecimentos, se, para não perder neles a
cabeça um belo dia, não houvesse necessidade de fazê-la passear de vez em
quando em outros lugares. O passeio, é verdade, o faço bem longe por aqui, em
tempos de livre despreocupação, de impressões caprichosas e que se perdem em
todos os fios de aranha; mas fez-se por aqui tanto barulho que era preciso
ir-se bem longe também para não mais ouvir esses berros de degoladores,
para não mais ver, à luz das tochas, esses medonhos rostos com seus bonés
pendentes e seus braços nus arregaçados. Tudo isso, agora, já passou e eis que
estamos tranqüilos: será para muito tempo? É o que precisa ver. Os quatro
miseráveis que estão nas Torres de Vincennes12 devem passar dias
horríveis. Você não imagina, meu amigo, como esses redutos são imponentes neste
momento, parecem inchados de motins, de facções de guerras, de vingança: quando
se abrir seu seio, cuidado para nós! a França será sua presa. Enquanto isso,
eles, os quatro, todo o mundo os abandona, todo o mundo diz que é preciso que
morram: oh! se eu fosse eloqüente, se meu pensamento soubesse vir à luz,
parece-me que eles não morreriam, pois, algo me diz bem alto que uma
cegueira fatal é quase todo o seu crime e que a morte pelo erro, tão
funesto seja ele, é algo totalmente exagerado. Mas o meu receio é que nós
também, como nossos pais, teremos lembranças sangrentas; e os que ficarem as
contarão pacificamente ou não acharão nelas outra coisa a não ser uma emoção
poética ou literária, como o faziam todos os dias para nós com os tempos
passados. Não é um pensamento triste: sempre homens brincando com ossos e
cabeças de mortos? Para quê? Os mortos não lhes dizem nada, não sabem fazê-los
falar, ou, se falam, os acontecimentos falam mais alto. Hamlet pode vagar no
cemitério, mas não precisa sempre que mate sua mãe e morra depois, ele mesmo,
assassinado. Há motivos, não é, para se acreditar na fatalidade. Resta, é
verdade, acima de tudo isso, um oráculo a interrogar, mas quem pensa nisso? Os
que o quereriam às vezes como eu, não ousam. Tudo isso me entristece muitas
vezes.
O Sr. Hugo me contou o caso de Sainte-Beuve, e você o conta ao Sr.
Mazure. Para falar a verdade, o Globe me parecia bem descomedido
em política desde algum tempo. Abandonou a literatura e as artes, não sei
a que mãos. Ele me irritava. Tinha-me desligado dele; mas desde que estou
sabendo que Sainte-Beuve o dirige, metade conversão, metade esperança
para um futuro melhor, recomeço a amá-lo; pode ser, até, que essa
circunstância, aos poucos, modifique minha opinião; reconheço tudo isso e o
acho muito ridículo; mas, sendo que a realidade é essa, por que não dizê-la a
você sobretudo, meu caro Victor, tão generoso, tão indulgente com seus amigos.
Se a peça do Sr. Paul13 for
representada antes de sua volta, quero, meu amigo, me inspirar de toda a
dedicação que o vi mostrar outrora. Escreverei ao autor e colocarei meu zelo,
ou antes o seu, à disposição dele. Pode, portanto, nessas condições acreditar
que, de todo jeito, você mesmo estará presente na representação.
Tornarei a vê-lo com muita alegria, e também o
Sr. Gavard. Que pena que nosso amigo Mazure não estará mais no encontro: três
homens dedicados para acolhê-lo. Acho-o feliz às vezes por contar com nossa
amizade, pois penso que se tem amigos somente quando se merece tê-los.
Leon
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