Relato dos objetivos
da Comunidade dos Irmãos de São Vicente de Paulo. Histórico. Intuição do
fundador. União dos dois elementos leigo e eclesiástico. Necessidade do
elemento eclesiástico. O Sr. Le Prevost anseia pela ordenação sacerdotal para
continuar a dirigir sua Comunidade. Testemunho favorável do padre Beaussier.
17 de março
de 1852
O abaixo assinado, da pequena Comunidade de São Vicente de Paulo, já honrada
várias vezes pelos benévolos encorajamentos de Monsenhor o Arcebispo de Paris,
toma a respeitosa confiança de submeter ao Sr. Vigário Geral um breve relato
sobre a constituição dessa obra e de chamar ao mesmo tempo sua atenção sobre
algumas questões concernentes à sua situação presente.
Há agora sete anos que o expoente e dois de seus amigos, vivamente
impressionados pela alta importância que a Providência parece outorgar, em
nossa época, às obras de caridade, resolveram consagrar a elas sua vida,
tomando ao mesmo tempo por fim procurar nisso sua própria santificação e
prestar às obras um auxílio mais estável e mais consistente do que aquele
que podem dar de costume os leigos.
Mediram bem, aliás, a extensão de seu sacrifício;
entenderam desde o início que, se quisessem dar-se a Deus, era preciso, por
causa dele, renunciar a tudo e que, se aspirassem a viver juntos, a extrair
na vida comum a força que a unidade proporciona, era preciso que
fundissem seus espíritos em um só e fizessem abnegação de si mesmos.
Esclarecidos e amparados pelos conselhos de um santo Bispo (Monsenhor de
Angers), que dirigia um dentre eles e que se achava de passagem em Paris,
ofereceram-se sem reserva e aceitaram todas as condições da vida religiosa,
excetuando a veste, sendo que o costume leigo lhes parecia mais favorável ao
movimento exterior das obras de caridade.
Os novos irmãos precaveram-se, aliás, de omitir as submissões que deviam a seu
próprio Pontífice. Comunicaram, desde o começo, seu projeto a Dom Affre, que
lhes deu seus conselhos com sua bênção paterna, assegurando-os de sua constante
proteção. Desde esse momento, teria até aberto para ele um alojamento na Casa
dos Carmelitas, se eles não tivessem feito à Sua Grandeza a observação de que
era mais conveniente para seus pequenos começos modelarem-se na sombra e
estudarem maduramente os desígnios do Senhor.
É de se notar que um dos três associados era casado, mas em condições
totalmente excepcionais, que tornavam possível uma separação amigável. Ela se
fez de um comum acordo, após um ano de prova, e sob a direção de Monsenhor de
Angers ao qual o caso havia sido deferido.
Muitos anos passaram, durante os quais a pequena Comunidade se constituiu,
tomou exercícios e formas regulares, empenhando-se antes de tudo em dar a seus
membros o espírito interior e o gosto das virtudes caras a São Vicente de Paulo
e a São Francisco de Sales: a simplicidade, a humildade, o zelo e a caridade.
Seus membros, no número de cinco durante vários anos, elevaram-se mais tarde a
12, depois, a 14, número atual de seu pessoal. Entre eles se acham três jovens
eclesiásticos aos quais Monsenhor quis bondosamente dar poderes para se entregarem
às obras de caridade em união com a pequena Comunidade.
O trabalho de constituição e de informação interior não absorveu tanto os
irmãos, que fossem impedidos de dar também seus cuidados a algumas obras de
fora. A obra da Santa Família, agora estabelecida em sete paróquias de Paris e
em várias cidades do interior, os fornos para os pobres, as Caixas para os
aluguéis, umas bibliotecas populares, as casas de patronato dos aprendizes e
dos jovens operários, o asilo para os idosos, designado sob o nome de Casa de
Nazaré, enfim, a casa dos órfãos da rua de l’Arbalète, colocada sob o
patrocínio de Monsenhor o Arcebispo de Paris, foram fundadas ou atendidas por
eles. Essas obras, embora bem imperfeitas ainda, deixam, no entanto, esperar
que, no futuro, a pequena Comunidade, desenvolvendo-se, poderia pôr, nas obras,
um elemento de consistência e de estabilidade que lhes falta e sobretudo (aí
está seu primeiro fim) manter nelas o espírito de fé e de verdadeira caridade.
Achar-se-ia ainda uma idéia bastante exata da ação que ela poderia exercer, nos
fatos que aconteceram em Grenelle, onde alguns de seus membros estão
estabelecidos.
O Sr. Vigário Geral já sabe que à sua chegada encontraram o venerável pároco
dessa paróquia abatido, desanimado por 9 anos de esforços e trabalhos em
aparência sem fruto, pastor sem rebanho, assim como ele mesmo dizia
tristemente. Logo uma Conferência de São Vicente de Paulo reuniu, ajuntou os
homens cristãos e em seguida, sucessivamente, a visita dos pobres, uma
biblioteca popular, fornos, um patronato de aprendizes e de jovens operários,
catecismos cotidianos aos adultos, às crianças das fábricas, enfim
relacionamentos diários com os moribundos, produziram um movimento geral na
população e, pouco a pouco, a reaproximaram da Igreja. Hoje Grenelle,
asseguram, está sob o aspecto religioso, uma das melhores paróquias da
periferia: os ofícios, a Quaresma, o mês de Maria, a Adoração, estão
acompanhados ali por um povo bastante numeroso, e grandes consolações são dadas
ao coração do venerável Pároco.
Sem exagerar a fraca parte que o Senhor lhes permitiu ter nessa feliz mudança,
os irmãos pensam, no entanto, que ela indica bastante bem o papel que tomaria
com o tempo a pequena Comunidade, como preparação e assistência da ação do
clero.
É fácil compreender quanto, numa associação semelhante, a presença de alguns
eclesiásticos é útil e quanta força os dois elementos eclesiástico e leigo,
estreitamente unidos por um mesmo espírito de zelo e de caridade, podem se
prestar um ao outro. Fora dessa combinação, ou a maior parte das obras são
impossíveis, ou então sem alcance – o clero das paróquias, demasiadamente
ocupado pelo ministério, não podendo desviar-se dele para satisfazer aos cuidados
e serviços multiplicados das obras. Por isso, o abaixo assinado se apraz em
reconhecer que o bem espiritual cresceu sensivelmente nos trabalhos da pequena
Comunidade, desde que a colaboração de alguns eclesiásticos lhe foi concedida e
que ela só se julgou completa em sua constituição a partir do momento em que
sua união com ela pareceu assegurada.
Mas, quanto mais esse
acordo parece desejável e pode produzir felizes frutos, tanto mais importa
torná-lo duradouro e prevenir os obstáculos que poderiam alterá-lo. É,
portanto, bem essencial colocar-lhe, desde agora, as bases, de tal modo que
possam subsistir e manter-se.
Quando os jovens eclesiásticos designados aqui entraram na Comunidade de São
Vicente de Paulo, esta já existia há vários anos, encontraram-na constituída,
tendo seu regulamento, seus exercícios, sua vida, em uma palavra. Aceitaram-na
humildemente, tal qual estava, e reconheceram também a autoridade que a
conduzia, todas as reservas feitas da honra de seu caráter e das latitudes
necessárias a seu ministério. A ordem e a paz existem até agora nessas
condições. Há, no entanto, na prática, alguns embaraços, e haveria talvez, com
o tempo, algumas dificuldades em uma tal disposição. Um leigo, sem o hábito
religioso sobretudo, dificilmente pode distribuir convenientemente as funções,
regulamentar os exercícios e os atos de um eclesiástico (fora de certos casos e
em vista de honrar os estados submissos e dependentes do Salvador). As coisas
seriam melhor na ordem e satisfariam mais o coração de todos se o chefe da
Comunidade fosse eclesiástico. Ora, aí está o ponto difícil; a hora não teria
chegado para os de dentro, jovens demais e ainda demasiadamente pouco
experimentados. Escolher alguém de fora não seria mais aceitável, pois as obras
se modelam de costume pelas mãos dos que as suscitaram; de ambas as partes e
segundo o parecer dos homens mais sérios, haveria inconvenientes graves e
peremptórios.
Nessa situação, o que sobraria portanto, a não ser que aquele que conduz
atualmente a Congregação, que lhe concebeu a idéia, reuniu seus elementos e
dirigiu seus primeiros começos com a ajuda visível de Deus, fosse confirmado na
sua posição com o caráter e as graças que a tornariam mais santa e mais
verdadeira? Assim melhor autorizado, ele poderia regularmente determinar as
funções e os lugares de cada um, equilibrar os dois elementos da obra e dar-lhe
uma base firme e definitiva que asseguraria seu futuro. Ele ousou esperar que
essa consideração pesasse bastante junto a Monsenhor o Arcebispo, para que Sua
Grandeza se dignasse examinar se ele não poderia ser admitido nas ordens
sagradas.
Confessando sua insuficiência e sua indignidade, alegaria para
compensá-las, de um lado, vinte anos empregados nos trabalhos de zelo, de
caridade e nos ensinamentos religiosos, de outro lado o apelo interior de Deus
que desde a idade de 20 anos (ele tem agora 48 anos) não cessou de persegui-lo
com a convicção íntima, profunda, de que um dia ele entraria na milícia santa.
Impedimentos de família, de saúde e outros tornaram, em diversas épocas de sua
vida, suas tentativas vãs, mas o desejo persistiu e, com ele, a esperança.
Hoje, um obstáculo se apresenta ainda; ele foi casado, assim como foi dito
precedentemente, e só tem sua liberdade em virtude do consentimento formal e
regular, dado por quem de direito. Esse impedimento é decisivo e
absoluto? Ele não acha e conjura o Sr. Vigário Geral a examinar as razões que
tem para assim julgar.
1o --- Ele declara, na verdade a mais inteira, que só renunciou à
sua liberdade após ter-se assegurado mais uma vez de que sua saúde se opunha à
sua admissão no seminário; que, em segundo lugar, não tomou esse compromisso
por nenhum motivo de interesse ou de paixão, mas unicamente por um sentimento
de generosidade, exagerada talvez, e para dar apoio a uma pessoa que lhe
inspirava uma estima e uma afeição merecidas, e que o isolamento e o
aborrecimento haviam jogado num estado de marasmo e de hipocondria que
ameaçavam sua razão e sua vida. Essa pessoa tinha 17 anos a mais do que o
abaixo assinado; foi combinado expressamente que as relações entre eles não
mudariam e que permaneceriam como irmão e irmã. Esse acordo foi exatamente
guardado.
2o --- Desde o início, a separação de bens aconteceu como a
separação de corpos.
3o --- Após alguns anos, essa pessoa tendo entrado em disposições de
espírito melhores, tendo retomado seus relacionamentos e o movimento da vida
ordinária, o abaixo assinado acreditou que sua tarefa estava preenchida, ele
pediu e obteve o consentimento de que precisava para entrar em comunidade e
consagrar-se à vida religiosa.
4o --- Ela, todavia, fez uso desse consentimento somente ao fim de
um ano de provação e após ter-se assegurado de que era definitivo. Esse
assunto foi acompanhado e resolvido por um santo Prelado (Monsenhor o Bispo de
Angers), que bondosamente quisera examiná-lo. Essa separação há muito preparada
não suscitou nem curiosidade, nem surpresa.
5o --- Desde então (quer dizer, há 7 anos) as duas partes,
permanecendo respectivamente com sentimentos de estima e de benevolência, não
tornaram a se ver, uma estando fixada em Paris, a outra tendo
constantemente morado na diocese de Lyon, onde tomara residência durante esses
últimos anos, vivendo ali em hábitos cristãos e em uma reserva de conduta
conforme a toda sua vida.
6o --- Ela tem presentemente 65 anos; goza de uma fortuna suficiente
e inteiramente independente.
Poderiam, é verdade, objetar que, rigorosamente, as regras pedem que a parte
restante entre em comunidade, mas um caso tão excepcional, uma reunião de
circunstâncias tão raras não poderiam justificar uma medida particular, tal
como a Igreja muitas vezes o admitiu?
O venerável eclesiástico que dirige o expoente há dez anos, o Sr. padre
Beaussier, dá, aliás, um pleno assentimento a essas considerações e junta suas
instâncias. De seu lado, o Sr. Vigário Geral que, há tantos anos, nunca o
perdeu de vista, lhe recusaria seu testemunho e não consentiria em responder,
se precisar, que, por uma docilidade profunda, uma circunspeção
constante, ele daria inteira garantia à autoridade e que sua vida toda
circunscrita ao pequeno círculo de suas obras, continuaria sendo tão obscura,
tão escondida como pelo passado?
Tais são as considerações que o abaixo assinado submete à benevolente
apreciação do Sr. Vigário Geral. Ele ousa esperar que, de um lado, pelo
interesse numa obra visivelmente abençoada por Deus, a qual já fez algum bem e
que promete fazer mais ainda se sua caminhada não for entravada; e, do outro
lado, por misericórdia para com uma alma durante muito tempo quebrada e
contrariada nos seus votos mais caros, ele tomará em mãos seu requerimento e
lhe providenciará um acolhimento favorável de Monsenhor o Arcebispo.
Profundamente agradecido por uma graça toda imerecida, ele tomaria o
compromisso formal de conservar a recordação dela até seu último instante e de
colocar em todas as suas orações e sacrifícios uma intenção particular e
especial pelo Primeiro Pastor da Diocese e pelo rebanho que ele conduz.
Le Prevost
(TESTEMUNHO DO SR. padre BEAUSSIER)
Encarregado desde o início de dirigir os membros da
pequena Comunidade de São Vicente de Paulo, creio poder assegurar que ela está
em boas condições para se fundar no espírito interior, objeto principal da
obra, e, nos limites da obediência, operar um grande bem por fora nas obras de
zelo e de caridade.
Acho, além disso, que seria essencial, para pôr esta Comunidade numa situação
regular e definitiva, que fosse conduzida por um Superior eclesiástico, o qual,
no meu ver, não poderia, sem graves dificuldades, ser tomado fora da obra. Tal
como é concebida, me parece abrir uma carreira aos jovens
eclesiásticos que teriam vontade de consagrar-se às obras de caridade e eu
acharia bom que esse caminho fosse seguido.
Enfim, quanto ao voto particular emitido pelo Sr. Le Prevost, no que diz
respeito a ele, não somente dou-lhe meu inteiro assentimento, mas gosto de
juntar minha diligência à dele, no pensamento de que Deus o chama a completar a
obra que Ele lhe deu para começar.
J.B. Beaussier – Padre
17 de março de 1852
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