Projeto de Conferência
em St Valéry-en-Caux.
O dom total existe em todos os irmãos, apesar das aparências. O Sr. Paillé não
se dá sem reserva. Para o Sr. Le Prevost a qualidade do engajamento religioso
se julga pelo dom total: “no caminho em que Deus o colocou, só se é feliz quando se
deu tudo”.
Vaugirard,
30 de agosto de 1854
Meu caro filho,
Você me escreveu uma boa carta, na qual colocou toda a abertura possível e
todos os bons desejos de seu coração. Muito obrigado, fico-lhe extremamente
grato; disse aos nossos irmãos suas afetuosas lembranças, e também sua
recomendação em favor da futura Conferência de St Valéry, nada de tudo isso foi
esquecido. Temos rezado pelo sucesso dessa boa obra, esperamos que o bom Mestre
lhe dará o êxito, se ela houver de resultar em glória para Ele. Vou procurar
organizar meus afazeres, para ir passar alguns dias com você, e daí fazer uma
visita de 3 ou 4 dias à minha irmã. Não acho, de jeito nenhum, que uma tão
breve aparição nos banhos possa de forma alguma me ser útil, mas irei para que
você não fique inteiramente isolado durante sua ausência. Procurarei partir
sábado, no comboio das 7 horas da manhã, ou no de meio-dia, se não estivesse
em condições tão cedo. Não vejo inconveniente em você visitar o amigo Folluc. O
que vem depois do projeto de Conferência é que me dá uma certa inquietação.
Será preciso organizar subscrições caridosas, movimentar-se muito, entreter
relações com um número considerável de estrangeiros e de moradores de St
Valéry; será bem diferente da paz que você procura. No entanto, se houver que
resultar algum bem real, se for possível reunir alguns elementos confiáveis,
acho que será preciso passar por cima e andar. Tenho alguns regulamentos
e manuais que levarei para você.
Você aborda em sua carta várias questões que só tinha encarado de maneira
geral, sem fazer aplicação particular a ninguém. Queria somente estabelecer
este princípio de que, sem uma dedicação verdadeira, sem reserva, sem mistura,
não se pode estabelecer nada de sólido e de persistente; que, graças ao Senhor,
esse espírito generoso, sinal bem certo da vocação e dos desígnios de Deus,
vivia em nossa pequena família e que ela devia guardá-lo como seu mais precioso
tesouro. Você me objeta que o sacrifício absoluto, e de si mesmo e das coisas
da terra, não está plenamente consumado por vários, que resta portanto duvidoso
se Deus nos chama a um despojamento completo e a uma abnegação inteira. Ouso assegurar-lhe
formalmente que esta dúvida não existe para nenhum de nós. Todos são dedicados
pelo coração sem restrição voluntária e, se existe, para uns ou outros, alguma
reserva aparente, está na posição, nas circunstâncias, não na vontade nem no
coração; portanto, o sacrifício é verdadeiro, puro, completo, digno de Deus,
pois a vítima imola-se toda inteira e não se reserva nada. São essas reservas
da vontade e do coração que me afligem e me inquietam, quando creio
percebê-las, pois são essencialmente contrárias à verdadeira perfeição, à
verdadeira caridade, conseqüentemente, à vida religiosa que aspira a uma e a
outra. São Vicente de Paulo tolerou que o despojamento exterior dos bens não
fosse absoluto. Isso é tolerado também em diversos lugares em nossa época, mas
é somente para o exterior, para poupar o espírito anti-religioso das famílias,
prevenir as imputações contra as Comunidades e colocá-las, na medida do
possível, fora dos interesses temporais; mas, no fundo, o princípio permanece
imutável, o despojamento indicado pelo Salvador deve ser consumado de coração,
francamente e sem rodeio, e praticado realmente no grau em que é possível sem
inconveniente. As regras foram estabelecidas pela Sabedoria eterna,
continuam sendo imutáveis e não afrouxam. O que parece ao olho pode variar na
forma, mas aquilo que se faz no coração é sempre o mesmo; o Senhor disse:
“Minhas palavras não passarão198”. Afirmo-o com convicção profunda,
esses princípios são os de todos os membros propriamente ditos de nossa pequena
Comunidade e vivem em todas as almas. Todos praticam o despojamento absoluto
pelo coração e o observam na vida concreta, sem outra reserva que não seja a
das circunstâncias às quais devem ceder. Tudo está bem assim, Deus não exige
mais do que isso, Ele quer o coração e, quando Ele pode mesmo contar com este,
todo o resto é secundário a seus olhos.
Quanto à abnegação da vontade, ao sacrifício da pessoa, é também assim; não é
com restrição, é sem nenhuma reserva mental que nossos bons irmãos entenderam a
palavra do Salvador: Que renuncie a si mesmo199; francamente, generosamente, jogaram-se todos no seio
de Deus; tiveram, sem dúvida, que aceitar as condições de uma obra que se forma
e que ainda não tem os privilégios de uma fundação consumada; mas, na plenitude
de seu coração e em toda a extensão de suas potências, dedicaram-se e
consagraram-se para sempre. Alguns, aos quais foi permitido, por uma palavra
formal, os outros, ao menos interiormente, pelo voto de seu coração. Se não tivéssemos
essa base sólida, não seríamos nada, nem diante de Deus, nem diante dos homens,
nem aos nossos próprios olhos; mas, graças sejam dadas ao Senhor por isso, sua
chama brilhou em nossas almas e nos consumiu e uniu na sua divina caridade.
Quanto a você, caro filho, você está, mais do que pensa, incorporado nessa vida
comum que o Senhor suscitou em nós, seus vínculos são verdadeiros e sinceros
também, só que, por um pouco de timidez, natural para sua pessoa, você hesita
às vezes e negocia um pouco na prática. Daí, para você, a fonte de hesitações,
de dúvidas e de tristezas de coração; daí, horas penosas e cheias de
inquietações. Com um pouco mais de ousadia, você ficaria liberto e provaria a liberdade dos filhos de Deus que lhe faltou até hoje.
Não desaprovo as medidas que tomou no tocante a seus bens materiais, são boas,
no fundo, mas aperfeiçoe um desapego mais verdadeiro, não faça dos poucos bens
que lhe restam uma perspectiva ou um reduto que se interponha entre Deus e
você. Não peço nada mais do que isso; quanto ao sacrifício de sua pessoa, a meu
ver, você o deveria a Deus, ao seu descanso, à sua paz que, creio sinceramente,
está a este preço. Sem isso, você não terá o coração contente nem tranqüilo,
porque, no caminho em que Deus
o colocou, só se é feliz quando se deu tudo. Você hesitará, recuará, quererá e
não quererá; se não for até lá, estará na estrada, mas nunca atingirá o
destino final. Santa Teresa diz: “Nunca acharia conveniente, quando Deus mostra
algum bem a fazer, que se recuasse por medo de falhar na execução; experimentei
por mim e por muitos outros que nunca a força falta a quem se dá confiando em
Deus.”
Você me havia aberto seu coração, caríssimo amigo, abri-lhe o meu, disse-lhe
meu parecer sobre seu interior; o examinei muitas vezes diante de Deus e creio
conhecê-lo bem; mas, meu caro filho, se minha persuasão não passar para seu
coração, acredite que não vai me desagradar de forma alguma, continuarei
a rezar a Deus por você, certo de que sua hora virá; pois seu coração é reto;
ajudado pela graça, ele triunfará, como você mesmo o diz, sobre as
resistências da natureza.
De qualquer jeito, nós o aceitaremos sempre tal como quiser ser; unindo-nos a
você, temos pensado que era para até o último dia, respondo por nossa
fidelidade como por meu terno, verdadeiro e paterno amor por você.
Seu amigo e Pai nos Corações de Jesus e de Maria.
Le Prevost
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