Após a alegria do retorno a Deus, as provas
interiores. O Sr. Le Prevost não sabe como explicar seu desencorajamento.
Tomento de não saber como servir a Deus. Sentimento de inutilidade. Casamento
infeliz de sua irmã. O padre Gerbet confiou o Sr. Le Prevost a outro padre.
Rumores sobre a peça de V.Hugo “O rei se diverte”.
1o
de dezembro de 1832
Não saberia, meu caro Victor, justificar meu longo silêncio. Não vem nem de
esquecimento, não preciso dizer isso, nem de preguiça, apresso-me em lho
assegurar, é um desses fatos tão freqüentes em nossa vida, dos quais não
saberíamos nos dar conta exatamente a nós mesmos, que não podemos explicar
porque restaria em seguida explicar a própria explicação, quando se enfrentaria
a mesma dificuldade. Dispense-me, portanto, meu amigo, de lhe dizer que um
desânimo profundo me aniquila há dias, meses, me invade cada vez mais e me joga
numa fase talvez inevitável da vida e que, sem dúvida, tenho, a meu turno, de
atravessar. É, como o poderiam dizer esses odiosos discípulos de
Saint-Simon25, uma época crítica, a transição da juventude à idade
madura, a resistência do jovem que mal entreviu o mundo dourado das ilusões,
das esperanças e que se recusa sair dele tão depressa. São mil coisas
ainda, difíceis de dizer, sentidas confusamente, que não suportam a
confidência, pois, ao dizê-las, a boca boceja, ao ouvi-las o ouvido fica
adormecido. Não o percebe já?
Sua amizade, meu caro Victor, queria no entanto informar-se e inquietar-se por
mim. Li isso com gratidão em sua última carta a Gavard. Fique tranqüilo, meu
amigo. Eu vi desde o início para onde apontava sua solicitude amigável, para o
único ponto doravante essencial e necessário para nós. Não ouso dizer que, nesse
ponto, tudo está bem para mim e agradaria a seu coração; tudo está tão bem ao
menos quanto é possível. Vivo agora no ar que me convém e não concebo que
jamais possa respirar um outro. Era mesmo esse o meu caminho. Essa era mesmo a
minha inclinação; segui-la me parece doce. Se você procurar, na base disso,
como posso estar tão triste e tão desanimado, voltarei a meu primeiro dizer,
não sei muito bem a causa disso. Encontro várias razões, todas boas
humanamente, mas que a resignação e a humildade cristãs deveriam neutralizar.
Não é absolutamente assim? Será que eu giro e busco minha forma definitiva aqui
embaixo, sem nem mesmo achar como me sentar? Não sei, mas o que importa afinal
o lugar e a forma? Não faz muito tempo, curvando a cabeça sob uma necessidade
que precisava mesmo aceitar, abrindo os olhos para uma evidência invencível, eu
me disse a mim mesmo: Vamos, já que a vida intelectual não é evidentemente
feita para mim, experimentemos um pouco a vida ativa, façamos, no humilde
ambiente onde me encontro, todo o bem possível. Sirvamos os nossos semelhantes,
sejamos tudo para todos, não rejeitemos a ninguém: nós veremos. Talvez seja
melhor assim para mim. Mal tinha pensado isso comigo mesmo, de todos os lados
vi acorrer, empurrar, surgirem pessoas de todo tipo, uns reclamando meus
lazeres, e dei-lhes; outros, meu dinheiro, e tiveram; e, num instante, me vi
sem um tostão e sobrecarregado por vários meses, e talvez mais, das ocupações
mais chatas. Mas depois de um exame vi que meu dinheiro servia àqueles para
viverem mais folgados, a estes, meus lazeres serviam como acréscimo aos seus
lazeres para neles folgarem mais à vontade. Isso não é muito animador. Ora, se
for preciso descer ainda mais baixo, onde então irei chegar? A catar uma agulha
caída, um novelo extraviado longe da caixinha? Está vendo, meu amigo, que
tenho razão para estar triste.
Tenho pena de você sinceramente e de coração por estar constrangido, (sim, pois
você não ousará agir diferentemente) ao ler até o fim esta epístola vazia e
insensata, mas eu mesmo, amigo, a escrevo com certeza de cansá-lo, de lhe
comunicar algo de meu torpor. Não se queixe portanto. Na verdade, se tivesse
dependido de mim que não a fizesse, teríamos aguardado dias melhores, mas o Sr.
Gavard me pergunta duas vezes cada semana: “Você escreveu?” Um não perpétuo é
pesado demais a carregar. Amanhã, direi sim e me sinto totalmente satisfeito
com isso. Perdoe-me portanto, meu caro Victor, e esqueça. Sobretudo escreva-me.
Não conheço outra voz a não ser a sua que ainda possa ser musical e harmoniosa
para mim neste momento. Grite bem alto, seja pratos ou trombone, pois, na
verdade, preciso de uma sacudida violenta. A flauta ou o oboé se fundiriam com
meu último suspiro. No entanto, parece-me bem que tenho uma alma, porque choro
muitas vezes, muitíssimas vezes, mas não sei o que fazer dela nem a quem
doá-la. Blasfêmia, dirá você. E Deus? Sim, Deus sem dúvida, mas não precisamos
nós, miseráveis mortais, de uma forma para o nosso amor? Será que ele pode ir
direto ao seio de Deus, sem asas, sem um raio, sem uma nuvem para levá-lo até
Ele? Quanto a mim, raio, nuvem, asas, tudo me faz falta. Eu digo a Deus:
“tomai-me, eis-me aqui humilde e submisso. Falai, obedecerei no grau mais
humilde, se vos agradar, no lugar mais escuro, quero vos servir”. Mas os
dias passam, minha juventude se vai, não sirvo para nada, não faço bem a
ninguém. Uma só criatura aqui na terra, minha pobre irmã, tem necessidade real
de mim: de noite e de dia, parece-me ouvir sua voz que chama; ela se debate nas
garras de um marido selvagem, insensato. Eu a vi faz um mês. Fiquei 15 dias
perto dela, mas trouxe de lá cólera, ódio e tristeza para anos, sem dar-lhe
alívio nenhum, pois ela assinou um contrato diante dos homens, disse sim
diante de Deus, e dois filhos a ligam invencivelmente ao bruto que ela chama de
seu marido; além disso, minha pobre mãe bem idosa, boa como os anjos, pura,
cândida como eles, em lugar de paz, de calma recolhida para seus últimos dias,
tem tudo isso sob seus olhos. Mas, insensato, por que tagarelar com você,
dizendo-lhe tudo isso? O silêncio me parece hoje a única corda poética
que me sobra e não sei guardá-la. Vou de novo quebrá-la. Não!
Sabe o que teria sido necessário para mim? Alguém melhor, mais elevado do que
eu, a me arrastar em seu turbilhão, me amparar, me dirigir. A faculdade de
entusiasmo é real em mim e podia por impulsos me levar a toda espécie de bem.
No mundo que ia criar o Sr. de Lamennais, eu me casava bem naturalmente e sem
esforço26. Diga-me, sabe você que ele está na Bretanha com os Srs.
Gerbet e Lacordaire, vivendo como recluso, trabalhando, meditando, orando,
resignado à inércia, à obscuridade relativa ao menos? E eu peço exemplos! Mas
também como comparar minha estatura com um tal gigante! Tanto valeria o grão de
areia dizendo ao Himalaia: irmão, caminhemos juntos. O Sr. Gerbet foi ótimo
para mim e me deixou nas mãos de um homem doce, excelente, não exatamente como
o idealizei, mas não tem importância, devo louvá-lo muito. Vejo às vezes, mas
de vez em quando, para não roubar seu tempo, o Sr. Boré seu amigo;
ele é extremamente bondoso para mim. O irmão dele está de volta.
Você observará, meu amigo, que nenhuma linha de tudo aquilo que precede exige
resposta e não lhe pedirei nem uma letra, se tivesse de me falar somente de
mim. Mas, meu querido Victor, é preciso que me fale de você. Devo saber
como está sua vida. Não quero perdê-lo de vista nunca. Conjuro-o portanto,
escreva-me depressa, diga-me mil coisas pessoais suas, mil coisas sobre seu
bom, venerável e adorável pai; sobre seus trabalhos, seu futuro, suas
esperanças, tudo, enfim, o que é seu e o interessa e o toca. Isso me fará um
bem extremo e me devolverá um pouco de ânimo. Adeus, amo-o de todas as minhas
forças. Não se aborreça e conserve-me também sua afeição, preciso dela.
Léon Le Prevost
Sabe que nosso amigo, o Sr. Hugo passou recentemente por vivas contrariedades.
Eu não estava na apresentação da peça “O rei se diverte”27. Não
ousei pedir entradas por causa de minha negligência junto ao Sr. Hugo. O jovem
Trébuchet que me tinha prometido um lugar não pôde cumprir sua palavra e todos
os meus esforços para me introduzir por outro lugar foram inúteis. A carta
escrita nos jornais não produziu bom efeito. Mas hoje as pessoas esquecem
depressa. Por ocasião da primeira obra do Sr. Hugo, se lembrarão somente de seu
verdadeiro talento de poeta.
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