Índice | Palavras: Alfabética - Freqüência - Invertidas - Tamanho - Estatísticas | Ajuda | Biblioteca IntraText
Jean-Léon Le Prevost
Cartas

IntraText CT - Texto

  • Cartas 1 - 100 (1827 - 1843)
    • 10 - ao Sr. Pavie
Precedente - Sucessivo

Clicar aqui para desativar os links de concordâncias

10 - ao Sr. Pavie

Após a alegria do retorno a Deus, as provas interiores. O Sr. Le Prevost  não sabe como explicar seu desencorajamento. Tomento de não saber como servir a Deus. Sentimento de inutilidade. Casamento infeliz de sua irmã. O padre Gerbet confiou o Sr. Le Prevost a outro padre. Rumores sobre a peça de V.Hugo “O rei se diverte”.

 

1o de dezembro de 1832

 

            Não saberia, meu caro Victor, justificar meu longo silêncio. Não vem nem de esquecimento, não preciso dizer isso, nem de preguiça, apresso-me em lho assegurar, é um desses fatos tão freqüentes em nossa vida, dos quais não saberíamos nos dar conta exatamente a nós mesmos, que não podemos explicar porque restaria em seguida explicar a própria explicação, quando se enfrentaria a mesma dificuldade. Dispense-me, portanto, meu amigo, de lhe dizer que um desânimo profundo me aniquiladias, meses, me invade cada vez mais e me joga numa fase talvez inevitável da vida e que, sem dúvida, tenho, a meu turno, de atravessar. É, como o poderiam dizer esses odiosos discípulos de Saint-Simon25, uma época crítica, a transição da juventude à idade madura, a resistência do jovem que mal entreviu o mundo dourado das ilusões, das esperanças e que se recusa sair dele tão depressa. São mil coisas ainda,  difíceis de dizer, sentidas confusamente, que não suportam a confidência, pois, ao dizê-las, a boca boceja, ao ouvi-las o ouvido fica adormecido. Não o percebe já?

 

            Sua amizade, meu caro Victor, queria no entanto informar-se e inquietar-se por mim. Li isso com gratidão em sua última carta a Gavard. Fique tranqüilo, meu amigo. Eu vi desde o início para onde apontava sua solicitude amigável, para o único ponto doravante essencial e necessário para nós. Não ouso dizer que, nesse ponto, tudo está bem para mim e agradaria a seu coração; tudo está tão bem ao menos quanto é possível. Vivo agora no ar que me convém e não concebo que jamais possa respirar um outro. Era mesmo esse o meu caminho. Essa era mesmo a minha inclinação; segui-la me parece doce. Se você procurar, na base disso, como posso estar tão triste e tão desanimado, voltarei a meu primeiro dizer, não sei muito bem a causa disso. Encontro várias razões, todas boas humanamente, mas que a resignação e a humildade cristãs deveriam neutralizar. Não é absolutamente assim? Será que eu giro e busco minha forma definitiva aqui embaixo, sem nem mesmo achar como me sentar? Não sei, mas o que importa afinal o lugar e a forma? Não faz muito tempo, curvando a cabeça sob uma necessidade que precisava mesmo aceitar, abrindo os olhos para uma evidência invencível, eu me disse a mim mesmo: Vamos, já que a vida intelectual não é evidentemente feita para mim, experimentemos um pouco a vida ativa, façamos, no humilde ambiente onde me encontro, todo o bem possível. Sirvamos os nossos semelhantes, sejamos tudo para todos, não rejeitemos a ninguém: nós veremos. Talvez seja melhor assim para mim. Mal tinha pensado isso comigo mesmo, de todos os lados vi acorrer, empurrar, surgirem pessoas de todo tipo, uns reclamando meus lazeres, e dei-lhes; outros, meu dinheiro, e tiveram; e, num instante, me vi sem um tostão e sobrecarregado por vários meses, e talvez mais, das ocupações mais chatas. Mas depois de um exame vi que meu dinheiro servia àqueles para viverem mais folgados, a estes, meus lazeres serviam como acréscimo aos seus lazeres para neles folgarem mais à vontade. Isso não é muito animador. Ora, se for preciso descer ainda mais baixo, onde então irei chegar? A catar uma agulha caída, um novelo extraviado longe da caixinha? Está vendo, meu amigo,  que tenho razão para estar triste.

 

     Tenho pena de você sinceramente e de coração por estar constrangido, (sim, pois você não ousará agir diferentemente) ao ler até o fim esta epístola vazia e insensata, mas eu mesmo, amigo, a escrevo com certeza de cansá-lo, de lhe comunicar algo de meu torpor. Não se queixe portanto. Na verdade, se tivesse dependido de mim que não a fizesse, teríamos aguardado dias melhores, mas o Sr. Gavard me pergunta duas vezes cada semana: “Você escreveu?” Um não perpétuo é pesado demais a carregar. Amanhã, direi sim e me sinto totalmente satisfeito com isso. Perdoe-me portanto, meu caro Victor, e esqueça. Sobretudo escreva-me. Não conheço outra voz a não ser a sua que ainda possa ser musical e harmoniosa para mim neste momento. Grite bem alto, seja pratos ou trombone, pois, na verdade, preciso de uma sacudida violenta. A flauta ou o oboé se fundiriam com meu último suspiro. No entanto, parece-me bem que tenho uma alma, porque choro muitas vezes, muitíssimas vezes, mas não sei o que fazer dela nem a quem doá-la. Blasfêmia, dirá você. E Deus? Sim, Deus sem dúvida, mas não precisamos nós, miseráveis mortais, de uma forma para o nosso amor? Será que ele pode ir direto ao seio de Deus, sem asas, sem um raio, sem uma nuvem para levá-lo até Ele? Quanto a mim, raio, nuvem, asas, tudo me faz falta. Eu digo a Deus: “tomai-me, eis-me aqui humilde e submisso. Falai, obedecerei no grau mais humilde, se vos agradar, no lugar mais escuro, quero vos servir”. Mas os dias  passam, minha juventude se vai, não sirvo para nada, não faço bem a ninguém. Uma só criatura aqui na terra, minha pobre irmã, tem necessidade real de mim: de noite e de dia, parece-me ouvir sua voz que chama; ela se debate nas garras de um marido selvagem, insensato. Eu a vi faz um mês. Fiquei 15 dias perto dela, mas trouxe de lá cólera, ódio e tristeza para anos, sem dar-lhe alívio nenhum,  pois ela assinou um contrato diante dos homens, disse sim diante de Deus, e dois filhos a ligam invencivelmente ao bruto que ela chama de seu marido; além disso, minha pobre mãe bem idosa, boa como os anjos, pura, cândida como eles, em lugar de paz, de calma recolhida para seus últimos dias, tem tudo isso sob seus olhos. Mas, insensato, por que tagarelar com você, dizendo-lhe tudo isso? O silêncio me parece hoje a única corda  poética que me sobra e não sei guardá-la. Vou de novo quebrá-la. Não!

 

            Sabe o que teria sido necessário para mim? Alguém melhor, mais elevado do que eu, a me arrastar em seu turbilhão, me amparar, me dirigir. A faculdade de entusiasmo é real em mim e podia por impulsos me levar a toda espécie de bem. No mundo que ia criar o Sr. de Lamennais, eu me casava bem naturalmente e sem esforço26. Diga-me, sabe você que ele está na Bretanha com os Srs. Gerbet e Lacordaire, vivendo como recluso, trabalhando, meditando, orando, resignado à inércia, à obscuridade relativa ao menos? E eu peço exemplos! Mas também como comparar minha estatura com um tal gigante! Tanto valeria o grão de areia dizendo ao Himalaia: irmão, caminhemos juntos. O Sr. Gerbet foi ótimo para mim e me deixou nas mãos de um homem doce, excelente, não exatamente como o idealizei, mas não tem importância, devo louvá-lo muito. Vejo às vezes, mas de  vez em quando, para não  roubar seu tempo, o Sr. Boré seu amigo; ele é extremamente bondoso para mim. O irmão dele está de volta.

 

            Você observará, meu amigo, que nenhuma linha de tudo aquilo que precede exige resposta e não lhe pedirei nem uma letra, se tivesse de me falar somente de mim. Mas,  meu querido Victor, é preciso que me fale de você. Devo saber como está sua vida. Não quero perdê-lo de vista nunca. Conjuro-o portanto, escreva-me depressa, diga-me mil coisas pessoais suas, mil coisas sobre seu bom, venerável e adorável pai; sobre seus trabalhos, seu futuro, suas esperanças, tudo, enfim, o que é seu e o interessa e o toca. Isso me fará um bem extremo e me devolverá um pouco de ânimo. Adeus, amo-o de todas as minhas forças. Não se aborreça e conserve-me também sua afeição, preciso dela.

 

                                                                       Léon Le Prevost

 

            Sabe que nosso amigo, o Sr. Hugo passou recentemente por vivas contrariedades. Eu não estava na apresentação da peça “O rei se diverte27. Não ousei pedir entradas por causa de minha negligência junto ao Sr. Hugo. O jovem Trébuchet que me tinha prometido um lugar não pôde cumprir sua palavra e todos os meus esforços para me introduzir por outro lugar foram inúteis. A carta escrita nos jornais não produziu bom efeito. Mas hoje as pessoas esquecem depressa. Por ocasião da primeira obra do Sr. Hugo, se lembrarão somente de seu verdadeiro talento de poeta.

 

 





25 Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825), precursor da filosofia positivista. Em sua obra póstuma, le Nouveau Christianisme, formulava a moral de uma sociedade, fundada sobre um “novo saber, um novo poder e um novo querer”. É preciso ultrapassar a religião, o cristianismo em particular, como o homem progride da infância à adolescência para atingir a idade adulta.



26 Lamennais tinha o projeto de fundar uma associação de padres e de leigos (a Congregação de São Pedro), consagrada à defesa da religião pela palavra e pelo escrito.



27 Anunciada no dia 22 de novembro, a peça é interditada logo no dia seguinte pela censura, por causa de imoralidade pública. V. Hugo tinha contra-atacado publicando uma carta aberta no Constitutionnel. Resultou dali um processo, em que V. Hugo foi absolvido. Obteve um triunfo popular. Ele que sonhava ser “o eco sonoro” de seu século, será, doravante, “o advogado de todas as liberdades”.





Precedente - Sucessivo

Índice | Palavras: Alfabética - Freqüência - Invertidas - Tamanho - Estatísticas | Ajuda | Biblioteca IntraText

Best viewed with any browser at 800x600 or 768x1024 on Tablet PC
IntraText® (V89) - Some rights reserved by EuloTech SRL - 1996-2008. Content in this page is licensed under a Creative Commons License