Narração da viagem e da instalação em Cannes. O Sr.
Myionnet é responsável da Comunidade durante a ausência do Sr. Le
Prevost247. Situação religiosa da região de Cannes. Grande cansaço do
Sr. Le Prevost. Ele faz o dom de sua pessoa à Comunidade: “aconteça o que
acontecer... tudo em mim lhe é dado até o meu último dia”.
Cannes, 1o
de novembro de 1856
Festa de
Todos os Santos
Caríssimo amigo e filho em N.S.,
Que todos os Santos dignem-se interceder por você e por todos os membros de
nossa querida família!
Chegamos ontem a bom porto, ao nosso destino, pelas 2 horas da tarde; digo com
razão “a bom porto”, pois fizemos, de Marseille até Cannes, uma viagem de 12
horas pelo mar, com um tempo, é verdade, muito calmo e que não deixava muito
recear temporal, mas a calma e a borrasca estão na mão de Deus, e devemos agradecer-lhe,
quando afasta de nós o perigo sempre ameaçador.
Meu pequeno companheiro de viagem248 não sofre até agora nem saudade
nem cansaço; pensa, sim, em Vaugirard e reza por seus irmãos ausentes, mas
ainda não manifesta desejo nenhum de ir ter com eles. A novidade dos lugares, a
beleza das regiões que atravessamos, o ocupam e o deixam maravilhado. Espero
que, empregando utilmente seu tempo, e sobretudo reservando uma parte bem
regular aos exercícios de piedade, ele se manterá e escapará da saudade.
Sinto hoje um pouco de cansaço e algumas indisposições de intestino, causadas
pela má alimentação provençal e pelos vinhos adulterados, que é preciso
agüentar ao longo do caminho. Vou tentar refazer-me uma pequena rotina de vida,
que me deixe esquecer o mais possível os cuidados que pede nosso miserável
corpo; não será sem algumas pequenas dificuldades aqui, onde não se acha sempre
comodamente as coisas que em nossa região são as mais simples e as mais comuns.
Nosso irmão Ernest Vasseur vai pôr-se ao par de suas funções em nossa vida
doméstica de solteiros e, quando estiver bem experimentado, lhe dirá o
resultado de sua aprendizagem.
Encontramos, com a ajuda da Santa Virgem, que colocamos como guardiã e
protetora de nosso pequeno interior doméstico, um alojamento simples, cômodo e
de preço módico. Tem vista para o mar e está voltado para o Sul; os
proprietários são cristãos e muito bondosos; aliás, a boa amizade do Sr. Padre
Taillandier nos tinha reservado um apoio todo cheio de benevolência e de
delicadezas atenciosas, na pessoa de uma piedosa moça que habita Cannes com sua
mãe doente há dois anos, e que tudo pôs em ação para estabelecer-nos nos
melhores e mais favoráveis condições. Graças ao obséquio dessa excelente pessoa,
já tínhamos, algumas horas após nossa chegada, visitado as duas igrejas, a
capela do hospício e o cemitério; tínhamos sido apresentados ao Sr. pároco e a
seus três vigários, e iniciado relação com várias pessoas da região. Nem
precisa dizer que, para as relações, as usaremos bem discretamente; se fosse
nas vistas de Deus que estivéssemos próximos do mundo, não nos teria mandado
para Cannes, onde há muito poucos recursos de sociedade; enquanto em Hyères,
onde eu estava no ano passado, era tão fácil criar para si rodas e relações de
sociedade. Responderemos às vontades do Senhor vivendo bem retirados: a solidão
é tão boa, quando se sabe procurar Deus! Somente a partir de hoje pudemos
instalar-nos em nossa pequena morada; ontem, na nossa chegada, descemos ao
hotel Pinchina, para onde, penso eu, você terá endereçado o cesto que nos deve
enviar e que ainda não chegou.
Foi preciso subir hoje três vezes à igreja empoleirada nas alturas, como é
ordinário aqui, em cima de uma montanha; cansei. A viagem era também um pouco
rude para minhas forças; não posso, por esse motivo, escrever-lhe longamente
por este correio: vou descontar com você daqui a pouco. Não esqueci nossa
querida família na grande solenidade de hoje. Recomendei-a a todos os
santos, sobretudo aos que nos precederam no caminho em que o Senhor dignou-se,
embora indignos, nos chamar à nossa vez; possam eles nos obter alguma
participação em sua abnegação, seu zelo, sua generosa dedicação.
Haveria muito bem a fazer aqui: esta região é minada pelo protestantismo e está
desprovida de todo meio de defesa, fora de uma pequena associação de algumas
damas caridosas que visitam um pouco os doentes, e das quais umas têm
verdadeiramente o espírito de zelo e o ardor pelo bem das almas. Ficaria bem
consolado se nos fosse dado levar alguma pedrinha para o edifício espiritual
que é completamente por ser fundado. Cinco ou seis homens somente se confessam
e comungam no tempo da Páscoa, sobre uma população de 4 ou 5.000 habitantes. No
entanto, se esses poucos homens combinassem entre si, poderiam ainda exercer
alguma influência e inspirar talvez a outros a coragem de imitá-los; não há
aqui Conferência de São Vicente de Paulo; veremos se, com a ajuda de Deus, não
se poderia estabelecer uma.
Logo que estiver restabelecido do grande cansaço que sinto e que me tiver um
pouco aclimatado, escreverei a todos os nossos irmãos. Enquanto isso, receberei
com alegria suas pequenas comunicações, que são para mim como que um meio de me
aproximar deles; refugio-me, por enquanto, na oração: é o recurso dos servos de
Jesus Cristo: sempre podem se reencontrar no seu divino Coração. Manter-me-ei
ali quantas vezes for possível, e marco encontro ali para meus bem-amados
filhos.
Domingo, 2 de novembro. Minha carta não pôde partir ontem: não tinha a força de
encerrá-la, de tão cansado e indisposto; sofro o efeito do ar do mar, embora a
temperatura esteja até agora perfeitamente suave e o tempo esteja dos mais
lindos dias de verão em nossa região. Será, espero, a questão de alguns dias;
logo que um pouco de forças me tiver sido devolvido, com alguma disponibilidade
de espírito, tudo será à disposição de nossa querida família; vivo realmente
por ela só e, aconteça o que acontecer: trabalho, sofrimento e oração, tudo em
mim lhe é dado até o meu último dia.
Adeus, caríssimo amigo, abraço com ternura todos os meus bem-amados
filhos e sou com a mais terna afeição
Seu amigo e Pai em Jesus e Maria.
Le Prevost
|