O projeto
de Conferência de São Vicente de Paulo não vai muito para frente. Langor
espiritual da região de Cannes. Papel das obras. O que pode estragar o trabalho
no campo do Senhor: o amor próprio, a falta de desapego, de interesse pelo bem
comum, de espírito de colaboração. Pôr-nos fora de questão em nossas obras.
Cannes,
14 de dezembro de 1856
Caríssimo amigo e filho em N.S.,
Achava que uma carta sua me chegaria quase ao mesmo tempo que a pequena caixa
de vinho que me enviou. Por isso não lhe mandei até agora certificado de
recepção. Ela chegou, acho, na quarta-feira, dia 10, à tarde, em muito boas
condições e sem acidente nenhum, graças a seu empenho em dispor com muito
cuidado as garrafas. Agradeço-lhe por isso assim como aos de nossos irmãos que,
bondosamente, quiseram cuidar desses detalhes. O endereço não estava bem exato;
não moramos no hotel Pinchina, descemos ali na nossa chegada, mas ficamos um
dia só.
Espero que tudo esteja bem em sua querida casa, assim como em Vaugirard e no
resto de nossa pequena família. Recebo poucas notícias; o Sr. Myionnet, demais
ocupado, me escreve por longos intervalos; devo resignar-me a isso, se não se
pode fazer melhor.
Nossa situação aqui é sempre a mesma; com o tempo mais sereno após as
chuvas, meu peito ficou menos irritado. Parece que novembro é um dos meses em
que o vento sopra particularmente aqui, mas no ponto da estação em que estamos,
não se pode pensar que seu rigor não se faça sentir ainda às vezes; janeiro e
fevereiro, dizem, são muito expostos a isso. Tomaremos o tempo tal como o
Senhor o der. Para a ovelha tosquiada Deus mede o vento; o provérbio será
verdadeiro até o fim dos tempos, pois a misericórdia divina não cessará senão
com nossas misérias. Não sofro muito, mas tenho o que meu irmão Beauvais chama
de uma medíocre saúde: vou vivendo, com digestões penosas, um sono agitado, um
corpo fraco e impressionável em toda a parte.
O projeto de Conferência para Cannes avança pouco ou de jeito nenhum; há aqui
um mal-estar nos espíritos. O Sr. Pároco é pouco apreciado: embora sendo um
padre merecedor e muito regular, se entende mal com seus vigários; daí, nada
vai. O Sr. Pároco não tem ninguém à sua disposição e não pode empreender nada;
os poucos homens cristãos que poderiam reunir-se acham as circunstâncias pouco
favoráveis e preferem esperar. Numa tal disposição dos espíritos, não sei a
quem nem a que me prender. Espera-se que na Quaresma um Jesuíta, que deve
pregar, poderá produzir algum movimento; veremos o que vai resultar disso, se
vivermos até lá. Não negligenciarei, enquanto isso, os incidentes favoráveis
que poderiam apresentar-se; este país precisa certamente sair de seu langor e
de seu desinteresse espiritual; sobra fé na massa, mas a ignorância geral é
extrema e os meios de ação são quase nulos. Aqui é que se pode ver como as
obras são úteis, para despertar a atenção do povo e reatar suas afeições às
coisas da religião. Cannes não tem obras, por isso tudo esmorece e falta
de vida espiritualmente. O Sr. Pároco o sente, mas tem medo de dar pelas obras
influência exagerada a seus vigários. Para centralizar em si o movimento e o
impulso, paralisa tudo. Os vigários têm zelo e tudo o que seria preciso,
em termos de qualidades para agir utilmente, mas são amarrados e reduzidos a
uma total nulidade. O mal-estar estende-se aos leigos, que, não sentindo
correspondência possível em lugar nenhum, renunciam a toda iniciativa e a todo
esforço para o bem. Como é triste ver assim a miséria humana misturar-se a tudo
e infiltrar-se até no campo do Senhor. Esforcemo-nos, caríssimo amigo, por
preservar-nos desse contágio. Trabalhemos em espírito puro e desinteressado,
coloquemo-nos objetivamente em nossas obras, façamos as coisas de Deus e não as
de nosso espírito próprio e de nossa vaidade. Quando se acompanha as coisas com
contenção e tenacidade, imagina-se facilmente que se defende uma causa santa e
que se guarda a posição que o próprio Deus deu: é quase sempre uma grande
ilusão. Muito tolerar, muito conceder à indulgência e à caridade, é o espírito
de Jesus Cristo e é também o espírito de sua Igreja; amemos, portanto, e
procuremos unicamente Deus em tudo, amemo-Lo bastante para procurar sua glória
nos outros e nas obras como em nós mesmos e em nossos próprios trabalhos.
Acho que o Sr. Myionnet lhe terá comunicado a carta de nosso bom padre
Taillandier, sobre os últimos instantes de sua santa e tão saudosa mãe. Você
terá visto nela que nossa excelente amiga obteve de seu marido que não
reclamasse os 5.000f
a nós emprestados para Nazareth. Perguntei ao Sr. Myionnet se, depois, o Sr.
Taillandier pai tinha, de alguma maneira, manifestado sua intenção a esse
respeito, mas não recebi resposta; diga-me, meu caro amigo, o que sabe sobre
esse ponto.
5 horas da tarde. Recebo neste instante a carta de nosso caro padre Hello e as
poucas linhas que você acrescentou nela. Agradeço-lhe muito pelas visitas que
fez para mim ao Sr. Tessier. Embora meu peito esteja menos sofrendo, vou
experimentar os pequenos embrulhos que você me manda. Desconfio muito dos
medicamentos, estando, até agora todavia, impróprio a usá-los utilmente, mas
farei essa experiência em espírito de obediência. Misturo um pouco de vinho que
você me enviou ao que eu tinha antes. Espero que, após um certo tempo, isso me
fará provar alguma melhora.
Recebo, pelo correio que me traz sua carta, uma carta do Sr. Myionnet e uma do
Sr. Halluin. Este último me relata o retiro que acaba de ser dado a suas
crianças e que se desenrolou muito bem. Além disso, me fala apenas de detalhes
internos sobre sua casa. Mandarei, aliás, sua carta ao Sr. Myionnet, para que
seja lida no Conselho; é preciso que tendamos a relacionamentos cada vez mais
habituais e íntimos.
Obrigado por l’Univers, isso me dá, para o período da noite, quando
estou sempre um pouco entorpecido, uma pequena distração.
Adeus, caríssimo amigo, vamos nos preparar aqui para a festa do Natal em união
com vocês; rezaremos pelos ordinandos, pelo Sr. Faÿ, sobretudo.
Seu amigo e Pai
Le Prevost
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