Coração compadecido do Sr. Le Prevost.
Santuário inviolável da alma,onde só Deus penetra. Exortações à confiança.
Reuniões na casa de Montalembert. O encanto que causa Montalembert em
seus convidados. O Sr. Le Prevost lamenta a ausência de Lacordaire.
Paris, 2 de
abril de 1833
É bem tarde para lhe escrever, meu caro Victor, e corro grande risco, senão de
chegar atrasado, pelo menos de chegar em mau momento, pois vindo a nós você
mesmo, seria mais simples aguardar um pouco e não colocar este prólogo às
nossas conversas. Escrevo no entanto, e, apesar também da má disposição em que
me sinto, tudo isso não me parece constituir obstáculo entre nós. Parece-me,
aliás, que você não deve ser deixado demasiado tempo a si mesmo e que é bom, de
vez em quando, uma voz amiga acordá-lo, trazê-lo de volta a este mundo e
fazê-lo crer ainda no futuro. Você está agora mais calmo, meu amigo, vendo as
coisas com mais nitidez e firmeza ou abatido, desanimado, com falta de ar?
Alternando uma coisa e outra, sem dúvida; mas de tão longe, não posso, senão
muito mal, acompanhar essas alternativas. Infelizmente, por viva que seja minha
simpatia, por íntima que seja a fusão de nossas almas, sinto aqui minha
impotência. Há coisas que não se podem dizer nem mesmo
adivinhar, que só Deus penetra, que talvez o amor também pode explicar ao amor,
mas que, fora disso, permanecem mistério impenetrável. É bom sem dúvida que a
alma tenha assim asilos invioláveis onde, sozinha com Deus, se abriga contra
todo contato, mesmo o mais amigo e o menos irritante. Por isso, não cederei à
vontade de seguir sua alma ali dentro, mas irei até o limiar pelo menos, meu
amigo, vigiando e orando, até a volta. Queria mais uma vez aqui antes de sua
chegada lhe dizer toda minha terna compaixão, quer dizer (voltando ao
sentido primitivo da palavra) como minha alma recebe vivamente repercussão de
todas as impressões da sua. Como vivo em você, como principalmente nestes
últimos tempos sua confiança me havia tocado profundamente. Sim, queria dizê-lo
a você, pois, não sei, parece-me às vezes que, aqui, mal ousarei lhe falar,
interrogá-lo com tanta efusão. Parece-me que a palavra me virá dificilmente e
me
parecerá demasiadamente rude para abordar este
ponto tão sensível, tão púdico do coração e que você terá quase sempre de
adivinhar o que não direi. Mas é a você, meu amigo, que é preciso dar tal
advertência? Não é, aliás, que sua situação me pareça unicamente sob o lado
doloroso, longe disso; minhas conversas com Cosnier que se apresentou mais
confiante ainda do que eu, me confirmaram plenamente em minhas esperanças. Mas
não ignoro que essa confiança, você mesmo não a pode ter senão por breves
instantes, e que, na maioria das vezes, o medo e o desânimo devem assaltá-lo.
Além disso, seu bom pai, tão cheio de ternura também, se identificou tão bem
com você que se tornou você mesmo, que ele amou, esperou e tremeu com você. É
portanto a alguns passos mais longe que você precisa procurar os prognósticos
do futuro, os reflexos menos incertos da realidade. E tudo isto, eu o vejo em
minha confiança íntima e como que sobrenatural, na confiança dos seus outros
amigos, em mil coisas que escapam à análise, mas que a mim prenunciam de longe
o porto para você, como no mar, a terra se revela de longe por não sei qual
perfume indizível que grita a todos “terra a vista” muito antes do vigia.
Essas, eu sei, não são razões; mas o que há de mais leve, o que há de mais
insignificante do que razões: presságios, sonhos, pressentimentos me parecem na
verdade, e a você também, acho, mil vezes mais aceitáveis e mais fiéis. Espero
portanto e sempre. Se possível, adquira confiança você também, meu amigo.
É verdade que para não misturar às nossas conversas elementos estranhos, tinha
descuidado de lhe falar das reuniões Montalembert, em outra época assunto de
comunicações tão interessantes para você. Com efeito, essas reuniões de irmãos
por vezes sonhadas por você, em que a unidade de crenças forma também
unidade para os corações, ali se realizam. Ali, orgulho, vaidade, timidez
irritável e importuna são colocados de lado. Fala-se, aborda-se um ao
outro, ama-se sem saber os nomes daqueles com quem se trocam palavras e
sentimentos. Não é que todos, sem exceção, sejam católicos, mas a massa,
o povo, se posso dizer, é essencialmente um, essencialmente católico. Quanto às
sumidades, não é absolutamente assim, mas o lugar influencia e torna um pouco
mais maleáveis os mais inflexíveis. O próprio Sr. Lerminier ali é um pouco
menos seco e temerário que em outro lugar. Sainte-Beuve, Ballanche, o Barão de
Eckstein, Mickiewiccz, o Conde Plater, Liszt, de Ortigues, de Coux,
d`Ault-Duménil, Ampère31 e muitos outros movimentam em tudo isso mil
idéias, colhem mil simpatias e dão vazão e alimento a esta necessidade de
admiração e de amor que todos nós temos na alma e que o oprime tanto quando
fica inativa32. Mas não teria palavras sobretudo para lhe dizer toda a
amabilidade, toda a sedução animadora do próprio Sr. de Montalembert. Ele fala
a todos e tão cordialmente que desde o início cada qual sente-se ligado a ele
para sempre. Não há canto tão escuro que lhe escape, grupo tão tímido que ele
não vá em um instante animar com sua conversa, atirando nela algumas palavras
sobre as quais se conversa a noite inteira. De resto, apagando-se tanto quanto
pode, ele quer ser, em casa, o laço de união entre todos e não o chefe. É de
uma modéstia cândida, cede sempre na forma, reservando somente o fundo,
sacrifica-se, enfim, e mostra-se cristão no seu salão como em qualquer outro
lugar, provando a todos que não há realmente amabilidade, graça, bem como
virtude, grandeza e força senão nisso. Eu poderia continuar longamente neste
tom, mas acho bem melhor deixá-lo julgar por si mesmo. As reuniões durarão
ainda toda sua estadia aqui e você virá a elas, ele o conhece e o deseja. Uma
noite, não sei como, ele veio me dizer: “Victor Hugo me leu ontem uma carta bem
boa que lhe escreve um jovem chamado Pavie, para lhe recomendar um Polonês”.
Você me vê exclamar daqui: “Pavie, Victor Pavie, mas ele é meu amigo, é meu
irmão. Ele virá, você o verá”. E Boré, me apoiando, disse que você era um
católico ardente, discípulo de Lamennais, não sei mais o quê! Tanto assim que o
Sr. de Montalembert o espera quase como nós e, como nós, apertará sua mão. Você
poderá também ver em Paris o Sr. Lacordaire, ele deixou a Bretanha. Não vem aos
domingos, não sei bem por quê, talvez por escrúpulo de submissão mais absoluta
à vontade do Santo Padre. Lamento muito, pois eu teria ficado feliz em vê-lo. Não
é preciso dizer que os seus laços com o Sr. de Montalembert não se afrouxaram,
que eles se encontram diariamente. Não sei mais nada a respeito. Tudo isso é
dito detalhadamente, meu amigo, mas eu o poupo não indo mais longe; você
partilhará, acho, minhas simpatias33 por este lar de comunicações, de
doce efusão, e terá comigo uma só queixa, é que possamos antever-lhe a
próxima interrupção. O Sr. de Montalembert irá, creio, à Alemanha na próxima
estação.
Adeus, até logo! Até o mais breve possível. Gavard convida-o também
ardentemente assim como seu bom, três vezes bom pai. Ele parece bem decidido em
acompanhá-lo nas suas viagens, e, desta vez, está mais certo de sua resolução.
Como lhe sou grato pelo que você me diz sobre o quarto oferecido em minha casa!
Como nos entendemos bem! Como essa palavra “dedicação”, uma vez bem entendida,
revela muitas coisas! Você contribuiu bem, meu amigo, para me fazer descer mais
ao fundo no sentido íntimo desta coisa e creio que está aí todo o segredo de
minha terna e tão infinita amizade por você.
Léon Le Prevost
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