Índice | Palavras: Alfabética - Freqüência - Invertidas - Tamanho - Estatísticas | Ajuda | Biblioteca IntraText
Jean-Léon Le Prevost
Cartas

IntraText CT - Texto

  • Cartas 1 - 100 (1827 - 1843)
    • 17 - ao Sr. Pavie
Precedente - Sucessivo

Clicar aqui para desativar os links de concordâncias

17 - ao Sr. Pavie

Testemunho de amizade. Comentário de um sermão de Lacordaire em Saint-Roch. Comentário sobre diferentes produções literárias.

 

Terça-feira 28 de maio de 1833

            Precisava, meu amigo, deixá-lo respirar um pouco após seu retorno, deixá-lo digerir em paz Paris e nós, com demasiada pressa, talvez amontoados durante sua breve estadia aqui. Precisava enfim, deixar a ausência se definir nitidamente. Portanto, não lhe escrevi até agora, apesar do desejo de fazê-lo muitas vezes. Dizia a mim mesmo: ele descansa, ele está dormindo; não o acordemos; mas o olhei dormir bastante tempo. Ali está você bem restabelecido. Vamos! levante-se e fale comigo. Diga-me bem sinceramente como você está, se sua vida está de novo organizada por aí e se recolocou em seu devido lugar todas as suas coordenadas, por um momento deslocadas. Diga-me em que estado se encontra seu espírito, em que modo, em que tom. Diga-me, meu amigo, o que lhe disseram na sua volta a respeito das coisas que o interessam e o que sucedeu depois. Se esgotasse a série de minhas perguntas, elas iriam longe ainda e o seu final prolongado ultrapassaria certamente este curto papel. É, você , que acostumado como estava a vê-lo, a ouvi-lo todos os dias, achei depois um grande vazio, um grande silêncio, e algumas palavras suas, jogadas para encher isso, cairiam no fundo, bem no fundo de minha alma e fariam nela um bem que não consigo dizer. Fico envergonhado de voltar a pedir, quando você tem dado tanto aqui, não reservando nada de si, entregando-se todo inteiro pela dedicação e, a exemplo do Mestre, dizendo: bebam e comam. Não pode haver nesta aproximação, espero, nada de ruim. Não considero como divina essa comida, amo-o em Deus; Ele o sabe, e se, às vezes, certa exaltação demais terrestre inebria minha cabeça, fecho os olhos e isso passa. Oh! sim, amo você em Deus! Todo sentimento contido, disse Madame de Staël34, tem pouca energia. Ela não via portanto que o amor pode comprimir o amor e que então há uma dupla força e dupla energia, de onde resulta a submissão, para nós a manifestação mais elevada do poder de amar. Fique, então, tranqüilo, meu amigo, conservarei o fogo, mas rejeitarei a fumaça. Fico um tanto inquieto, meu amigo, achando que o pensamento que me domina felizmente hoje e para sempre, espero, possa voltar em minhas cartas inevitavelmente demais até a monotonia, até a preocupação maníaca. Sem dúvida, pode-se dizer: onde está o tesouro, aí está o coração, ou, com São Paulo: Nos stulti propter Christum. Si insanimus, Deo insanimus35. Sem dúvida não se o que cristãos conversando entre si teriam de melhor a dizer a não ser coisas de Deus ou relacionadas com Deus; mas também, um sentimento divinamente inspirado pode soar mal, atravessando a palavra humana, mas a atenção não é sempre piedade, é preciso aguardá-la e não cansá-la. Sinto isso. Diga-me, então, meu amigo, se você notou em minhas cartas, em minha conversação ou meus atos, alguma disposição a exagerar em tudo isso. Observo, por ocasião disso, que você é excessivamente sóbrio para dar conselhos. É modéstia exagerada. Julga-se mal a si mesmo. Uma advertência, muitas vezes, faz grande bem e, da minha parte, me aconteceu várias vezes sentir falta da sua. Se você me ama, ia dizer; eu me corrijo: Se você quiser me agradar, me aconselhará todas as vezes que for conveniente e mais do que menos.

            Alguém lhe disse que o Sr. Lacordaire tinha pregado? Em todo caso, lhe direi algumas palavras sobre isso. O sermão acontecia às 7 horas da noite em Saint-Roch, um domingo. A temperatura e o sol eram esplêndidos, quer dizer que a assembléia adorava a Deus do lado de fora talvez, mas estava pouco numerosa ao redor da cátedra. Em compensação bem composta, [todos os amigos de Montalembert], inclusive o século 18 e toda a Polônia refugiada. Mas se uma intenção por demais mundana havia convocado a maioria, receberam na hora seu castigo: houve alimentação para os cristãos, mas somente para eles. Toda a parte humana da coisa: colocação, lógica, eloqüência, tudo isso naufragou; não sobrou nada ao orador, seja por emoção, seja por disposição, a não ser o plano e os conteúdos de seu discurso, com sua encantadora voz tão untuosa e tão penetrante, mas, mesmo assim, faltando naquele dia de hábil direção, demasiadamente poupada e mais tarde ameaçando apagar-se completamente. O Sr. Lacordaire não tinha escrito seu discurso, com razão contava com sua facilidade para organizar sua matéria e acomodá-la melhor, segundo a inspiração do auditório. Mas isso falhou para ele, por quê? Não sei, mas em toda a parte o desenvolvimento faltava, grandes pensamentos eram jogados, grandes conteúdos eram esboçados, mas o desenvolvimento, mas a ligação, a fusão harmoniosa não puderam chegar, a inteligência mais fraca supria a isso; teria sido, parece, obra de servente de pedreiro, no entanto por falta disso, a coisa foi totalmente falha. Falo aqui humanamente, claro, pois não sei se cristãmente não se poderia dizer que assim despojada de artifício e quase de invólucro, a palavra não era ainda mais pura, mais castamente introduzida na alma. É preciso reconhecê-lo porém: dispensa-se dificilmente a participação exterior e, incontestavelmente, esse efeito particularpodia ser muito restrito. O Sr. Lacordaire ficou na hora, não desanimado, a coragem como a esperança lhe vêm do alto, mas um pouco emocionado. Tinha que ser, e na sua humildade, bem convencido agora de que é preciso falar à juventude, a nós seus amigos e seus irmãos, mas não numa cátedra, não a uma assembléia de Igreja. Teria sido necessário talvez diminuir-lhe o efeito dessa primeira tentativa; ele teria tentado de novo, e, melhor preparado, teria atingido plenamente seu intento; mas não pesamos sempre nossas palavras. O Sr. de Montalembert, como cristão, como amigo, acreditou no seu direito de falar claro e usou largamente dele; outros ainda sem dúvida e eu mesmo que o vi pouco depois, não insisti bastante sobre o que havia de grande na coisa como tal. Uma interrupção me impediu aliás de fazê-lo, uma visita que sobreveio. Lastimei isso muito depois e tanto assim que lhe escrevi algumas palavras para completar meu pensamento. Ele me deu uma resposta tão cheia de bondade, de tocante humildade que você ficaria encantado como eu. O atrativo poderoso que Deus lhe deu pela juventude, a experiência que tem de seus sentimentos, a sua consciência da necessidade para ela de uma alma que a compreenda, tudo isso, disse ele, o leva a trabalhar por ela. “Precisa saber, acrescenta, entender a vontade da Providência que habitualmente só se manifesta a nós por mil pequenas coisas que agem sobre todos os pontos de nossa alma e já a fazem decidir antes que tenha refletido. No caso em que me encontro, a reflexão está de acordo com a atração íntima. De resto, as coisas se produzem aos poucos, sem barulho, e não me apresso em atuar, sabendo bem que Deus disporá tudo para o melhor, desde que me abandone à sua vontade”.

 

            Isso não lembra, meu amigo, Fénelon dizendo: deixem-se levar pelo sopro da graça, não resistam à vontade de Deus, tornem-se como uma boa criancinha, que se deixa carregar sem mesmo perguntar para onde está sendo levada.

 

            Eis aí muitas citações, meu amigo, demais talvez de uma só vez; por medo de continuar citando, deixo de lhe falar dos Pèlerins polonais, que vocêleu sem dúvida; ainda está ali um homem segundo nosso coração. Você acha como eu que o prefácio pelo Sr. de Montalembert não é de ouro tão puro como a própria obra36? A indignação é legítima, sem dúvida; mas o ódio em Deus ainda é amor. É que a infelicidade coloca bem perto de Deus. Pellico37, Mickiewicz  encontraram ali revelações tão luminosas que voltaram dali com uma auréola. Oh! se a eles também como a um outro poeta se dissesse: amigo, de onde vens etc.? Oh! como seria linda sua resposta!

 

            O Sr. Gavard lhe escreveu e deseja se encarregar de lhe remeter, com seu parecer, suas composições. Portanto, não tenho de lhe falar delas, basta um; uma palavra de explicação somente: você pareceu entender sobre o Organiste38 que  não tinha sido levado a sério por mim; longe disso. Disse que o estilo me parecia por vezes demais familiar. Entendia que a forma em alguns trechos não estava suficientemente modelada, se posso dizer. A coisa não estava ali à luz da arte, mas permanecia no mundo onde se vive, onde se fala, no mundo familiar. A outra composição, embora menos elevada sem dúvida, sob esse aspecto é mais irrepreensível. Assim é somente que a entendi, ao dizer que estava mais acabada e podia, de preferência à outra, ser imediatamente publicada. Essa explicação não tem muita importância. Desejava, porém, lhe fornecer; se tiver alguma confiança em minha circunspecção e prudência, você me devolverá o Organiste, após tê-lo retocado um pouco e posso, creio, responder de colocá-lo de maneira conveniente, assim como o outro, a moça ou lacrymae [as lágrimas]. Você não esquecerá, meu amigo, que tem um medalhão que me é bem precioso. Sonhei depois, no entanto, que seu bom pai desejava talvez ficar com ele. Consulte-o e faça o melhor. De qualquer forma, entre minhas mãos, ele seria simples depósito revogável à vontade. Já que um só exemplar está sobrando, ele deve pertencer a todos, e, segundo o momento, passar de um para o outro. Você julgará, portanto, e, lanço-lhe o desafio de não fazer segundo meu desejo. Pois, como amigo, claro, a matéria em mim empresta; se não usá-lo, se não o aproveitar ao máximo, a culpa será sua. Adeus, meu amigo, serei menos tagarela uma outra vez. Hoje, não podia ser de outra forma. Abrace com ternura para mim seu pai.

 

            De todo o coração seu.

 

                                   Léon Le Prevost

            Sabe que assunto ocupava nossas últimas cartas: é  uma efusão aberta que não pode estancar. Tenha a certeza de que a todo instante, a toda hora minha atenção está pronta, que minha simpatia está sempre vigiando. Li a Fée39, em lembrança de você. Eu era digno de lê-la. Senti isso pelo prazer que me deu. Que Nodier um só passo ainda, que rompa um último laço que o liga aos outros, para se entregar todo a nós e não amarei ninguém mais do que ele.

 

 





34 Filha de Necker (ministro das finanças de Louis XVI), Mme de Staël (1766-1817) ilustrou pelo exemplo de uma vida apaixonada e por suas obras literárias, o que será mais tarde a ideologia romântica. Para ela, a poesia tem de exprimir os tormentos das almas ao mesmo tempo inquietas e melancólicas. Levado, por sua natureza sensível, a expandir seus sentimentos, (“alguma exaltação demasiadamente terrestre...”), o Sr. LP saberá dominar-lhe as manifestações excessivas.



35 Nós somos loucos por causa de Cristo. Se somos loucos, somos loucos para Deus (cf. 1Cor 4,10)



36 A obra do poeta Mickiewicz acabava de ser publicada em Paris, em 1832. Montalembert a tinha traduzido.



37 Silvio Pellico (1789-1854), escritor italiano. Acusado de pertencer aos carbonari (sociedade secreta que se tinha comprometido por juramento a expulsar os Austríacos da Itália), ficou preso durante 10 anos na fortaleza do Spielberg, na Áustria. Liberado em 1830, publicou, dois anos depois, Mes prisons. Mais do que a descrição do regime severo ao qual foi submetido, o autor narra sua volta a Deus, seu itinerário espiritual, no meio dos sofrimentos suportados de maneira cristã. Escrito com a alma do poeta e a mansidão do cristão, o livro decepcionou os mais exaltados de seus amigos. No entanto, teve uma grande repercussão na Europa. Entende-se que o Sr. LP, ele mesmo que tornara a ser cristão há pouco, tenha sido marcado por um tal testemunho. Na carta 19, do 12 de julho de 1833, diz ter composto uma bastante comprida recensão de Mes Prisons. Mas, infelizmente, esse texto, enviado à Revue Européenne foi extraviado.



38 Trata-se da peça de Victor Pavie, lOrganiste Boyer (cf. Victor Pavie, sa  jeunesse; ses relations littéraires, por Théodore Pavie, 1887. p.141.)



39 La Fee aux miettes, (1832) obra do poeta e escritor Charles Nodier (1780-1844), cujo salão literário parisiense, no Arsenal, foi um dos focos do movimento romântico. Na Fée, conto fantástico, procura reconciliar o sonho e a realidade.





Precedente - Sucessivo

Índice | Palavras: Alfabética - Freqüência - Invertidas - Tamanho - Estatísticas | Ajuda | Biblioteca IntraText

Best viewed with any browser at 800x600 or 768x1024 on Tablet PC
IntraText® (V89) - Some rights reserved by EuloTech SRL - 1996-2008. Content in this page is licensed under a Creative Commons License