Apresentação das hesitações e das reflexões dos
fundadores sobre a maneira de resolver a situação respectiva dos irmãos
eclesiásticos e dos irmãos leigos no Instituto.
Vaugirard,
6 de agosto de 1859
Monsenhor,
Estamos
comovidos e agradecidos mais do que poderíamos dizer pela solicitude toda
paterna que Monsenhor digna-se conceder à nossa pequena família e da qual está
dando-lhe tão constantemente provas desde o dia em que nasceu sob seu olhar,
abençoada por Sua Excia., sustentada por seus conselhos, encorajada pelos
sinais de sua terna caridade. Não estamos estranhando os novos testemunhos que recebemos
dela, de modo todo particular, neste momento. Estávamos, há um certo tempo,
mais ocupados do que de costume por nossa situação e por nosso futuro. Tínhamos
rezado muito para que o Senhor se dignasse iluminar-nos e mostrar-nos
claramente em que caminho devíamos andar; sua carta, Monsenhor, chegando com
tanta oportunidade, nos parece como que a resposta que o Senhor faz às nossas
instâncias.
A
bênção divina não cessou de ser bem sensível entre nós, vivemos na união e na
paz, nossas obras prosperam, nosso número aumenta lenta mas constante e
seguramente; tudo, portanto, no momento, parece bom e satisfatório, mas a
preocupação do futuro mantém sempre alerta aqueles dentre nós que guiam o
barco. A questão, bem especialmente, que pareceu-lhe dever ser submetida a
Monsenhor o Arcebispo de Tours [Monsenhor Guibert], concernente à união íntima
e à coordenação dos dois elementos eclesiástico e leigo, atrai toda a nossa
atenção e nos parece exigir uma solução. Minha saúde é mais do que frágil,
acidentes que ainda se renovaram recentemente indicam que um nada poderia pôr
fim à minha existência; na presença de uma necessidade que pode ser tão
próxima, é impossível deixarmos de dizer a nós mesmos: “O que deveria ser
feito em tal circunstância?” Não estamos vendo resposta bem nítida. Julgando o
caso somente a partir das determinações presentes, nosso modo de ser atual tem
reais vantagens: eclesiásticos e leigos trabalham cordialmente na obra de Deus
sem ocuparem-se de si mesmos e de sua condição. Cada um traz para o conjunto
todas as faculdades pessoais e os recursos de que dispõe; resulta disso que
todos valem tudo o que podem valer, tendo livre espaço para empregar os
dons que o Senhor lhes fez. Nós, leigos, dirigindo os empreendimentos,
sempre estamos dispostos a proporcionar neles um lugar de honra e uma parte
eminente aos eclesiásticos, dos quais veneramos o caráter, dos quais pedimos e
assistimos o ministério; eles tendo a direção seriam bastante condescendentes
para nós, bastante dispostos a nos proporcionar a parte de que precisamos para
guardar iniciativa, movimento, poder de ação? É bem duvidoso; estaríamos,
portanto, inclinados a conservar o estado presente das coisas; seria ele, acho,
igualmente aceito por fora, se conseguíssemos corrigir-lhe os inconvenientes
mais salientes. Considera-se, em geral ao nosso redor, com desconfiança e
descrédito uma instituição que parece, aos olhos de vários, uma expressão tão
caracterizada quanto é possível do laicismo, já que, ostensivelmente, leigos
organizam ali obras em que dão, em aparência, somente o secundo lugar ao clero.
Digo “em aparência”, pois, de fato, o objetivo supremo de nossas obras sendo
espiritual, o princípio espiritual da Comunidade, o elemento que a representa
mais particularmente, age e domina realmente no fundo de todos os nossos
movimentos, de todos os nossos trabalhos e de toda a vida de nosso Instituto.
Não se quer observar também, quando nos criticam, que a Sociedade inteira está
organizada assim hoje em dia, que até a maioria das instituições cristãs estão
na mesma condição, deixando o movimento exterior e a iniciativa aparente ao
elemento civil ou secular, e guardando somente a vida e o poder espiritual para
o elemento eclesiástico e religioso. Se se supõe, sobretudo, que o elemento
leigo é piedoso, devotado a tudo o que se refere à glória de Deus, deferente,
respeitoso, submetido à Igreja e a toda sua hierarquia, não se vê que seja
errôneo e inconveniente constituir obras nessa condição. Mas seria preciso dar
satisfação às desconfianças que se tem contra nós em tudo o que elas têm de
real ou até de especioso. Seria de desejar que nossos irmãos eclesiásticos
tivessem, particularmente para seu ministério, uma direção mais constante e
mais ostensível sobretudo; que recebessem exteriormente, como de fato, sua
missão, para suas funções, de um chefe eclesiástico, que tivessem, em uma
palavra, um resguardo honroso que abrigasse a dignidade de seu caráter e
tirasse ao seu ministério até a sombra da dependência frente a uma autoridade
leiga. Pensamos em pôr, para chefiar nossa pequena família, um Pai espiritual
dando vida espiritual à Comunidade e às suas obras, dirigindo de modo todo
particular os irmãos eclesiásticos, dando-lhes missão segundo os pedidos do
Conselho e acompanhando de cima o andamento da Congregação sem misturar-se
direta nem ativamente a seus movimentos. Mas esse Pai, onde encontrá-lo? Fora
da comunidade? Mas é bem difícil; quem vai querer cuidar de nós com o zelo, a
prudência, a constância, o desprendimento desejáveis? Se, por impossível, se
encontra um, como, quando ele faltar, achar um segundo com as mesmas qualidades
e o mesmo espírito sobretudo? Se o procuram na Congregação mesma, é preciso
supor que ele seja suficientemente maduro, experimentado; se for jovem e ainda
ativo, para onde levará suas faculdades de iniciativa e de ação? Nas obras da
Comunidade, ele sairá de seu papel; fora, vai desgastar-se sem proveito para
ela.
Numa
visita que fiz ultimamente à Sua Eminência Monsenhor nosso Arcebispo [Cardeal
Morlot], a algumas palavras que tentava dizer-lhe e que foram, é verdade,
interrompidas por uma pessoa que sobreveio, ele me respondeu que talvez
fosse sábio para nós ligar-nos a alguma Congregação já fundada e cuja
consistência poderia nos dar apoio. Sem tomar essas palavras como um aviso,
sendo que Monsenhor não pudera dar precisamente esse alcance às suas palavras,
temos examinado muitas vezes, antes e depois, se não encontraríamos vantagem em
unirmo-nos, como ordem terceira, à Congregação de São Lázaro, por exemplo,
colocando-nos, em relação a ela, mais ou menos como estão as Irmãs da Caridade
que têm sua constituição própria, sua Superiora comum, e que são somente
dirigidas e apoiadas de cima pela Congregação de São Lázaro. Sei que a situação
seria diferente em nosso caso; muitas coisas deveriam ser consideradas; até
onde iria a união e a dependência? O que viriam a ser nossos votos de religião?
Para tudo isso, seria preciso esclarecer-se melhor, tomando contato com as
regras das Irmãs de São Vicente de Paulo, no que diz respeito a seus
relacionamentos com os Srs. de São Lázaro. Supondo, por exemplo, que o Sr.
Superior Geral designasse um padre de sua Congregação para nos dar alta
direção, se poderia temer que ele cuidasse fracamente de nós, o que
tornaria nossa aproximação com a Congregação da Missão quase ilusória, ou que
ele interviesse efetivamente demais no detalhe de nossos assuntos e estorvasse
nossa movimentação assim como a livre direção do Superior da Comunidade.
Perdoe-me
meu bom e venerado Senhor por gastar tanto tempo em dizer-lhe todas as nossas
dúvidas, todas as nossas incertezas; elas podem servir a esclarecê-lo,
mostrando-lhe melhor como estamos pouco firmes e quanto o seu apoio, as luzes
de sua elevada experiência nos serão necessárias.
Ficamos
felizes em acolher a esperança que sua carta nos permite conceber de uma
próxima visita que Sua Excelência faria a seus filhos de Vaugirard; ela seria
para nós um verdadeiro bem e, ouso dizer, Monsenhor, uma verdadeira boa obra
para Sua Excelência. Nós lhe vamos preparar, se não a desprezar, uma humilde
célula; mas não saberia insistir bastante sobre toda a indulgência e o espírito
de pobreza de que Sua Excelência teria necessidade, se não achar impossível
abrigar-se em nossa pobre casa. Estamos construindo neste momento um corpo de
edifício considerável, a desordem resultante, além da vizinhança de nossas
oficinas, torna bem pouco agradável deter-se em nossa pobre morada; se Sua
Excelência superasse todos esses inconvenientes, nossa gratidão só deveria ser
maior por isso. Esperarei de sua bondade, Monsenhor, algumas palavras de
parecer sobre o que achar possível decidir a esse respeito.
O
assunto de uma fundação de nossa pequena Comunidade em Angers parece, com
efeito, sofrer muitas dificuldades, como o presume, Monsenhor; as razões de
interesse, para dizer a verdade, não entraram nisso para nada: sabemos que
lugar elas devem ter nas coisas que a Providência conduz; nossa fraqueza, a
insuficiência de nosso pessoal, o peso de nossos encargos presentes foram os
principais motivos de nossa decisão; há mais alguns também, inerentes à própria
obra que teríamos tido que assumir e às circunstâncias em que ela nos teria
colocado. Se tivermos a felicidade de vê-lo, poderei, Monsenhor, dar-lhe, a
esse respeito, explicações mais detalhadas. Lamento terminar minha carta tão em
baixo da folha e peço-lhe, Monsenhor, para aceitar a homenagem que lhe
apresento em nome de todos, de nossos sentimentos de profundo respeito e de
filial devotamento.
Seu
humilde servo e filho em Jesus e Maria
Le Prevost
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