Amizade fundada em
Deus. Como sofrer como cristão. O terço do Sr. Le Prevost.
Circunstância nas quais o Sr. Le Prevost cessou toda prática religiosa e
abandonou sua vocação. Encoraja seu amigo a perseverar na escolha de uma
esposa. Notícias de Gavard, Sainte-Beuve, Montalembert, Lacordaire. Ozanam e
seus amigos traduziram a obra de Pellico, Mes Prisons, da qual o Sr. Le Prevost um exame crítico.
12 [de
julho] de 183342
Suas cartas me emocionam tão intimamente, meu amigo, que fazem nascer em mim a
necessidade de uma efusão imediata, de um desabafo imenso cuja impetuosidade e
excesso controlo a duras penas. Mas o que, antes de tudo, torna-me esta
emoção preciosa é que vejo nela um dom da graça, um encorajamento, porque
encontro um perfume celeste que diz bastante de onde descende; depois,
minha alegria duplica-se por reação, pois, meu amigo, a ternura infinita
de sua carta não me deixa dúvida a respeito. Eu também tenho algum poder sobre
você, eu também pareço-lhe um presente de Deus. Oh! como me faz bem servi-loem
alguma coisa, a você que para mim tanto significa, a você cuja ação me teria
oprimido se não a tivesse suportado com tanto amor e se uma voz não me tivesse
gritado: receba, receba sempre, é Deus que dá. Quando uma vez se colocaram
nesse caminho todas as suas afeições, quando se sentiu tudo o que elas haurem
de energia e de pureza ao harmonizarem-se com o amor divino, será possível
deixá-las ainda se extraviarem sozinhas? É possível preferir mil sons chocando-se
e discordantes ao concerto celeste de que se participou um instante? Eu bem sei
a resposta. O sol brilha quando absorve e dissipa as nuvens, senão o tempo fica
fechado, o ar carregado; chega-se à noite sempre esperando o dia. Por isso,
sentindo todo o meu ser que se renova, minha alma que se refaz, todos os meus
sentimentos primitivos perdidos depois, e que eu acreditava apagados,
renascerem pouco a pouco sob o sopro de Deus, deixando, enfim, todo esse
trabalho interior realizar-se em mim, eu, no entanto, tremo às vezes e digo: se
me mexo, a obra ainda frágil vacila e desmorona; então levanto os olhos para o
alto, em seguida penso em você e minha confiança retorna.
Pode contar, meu amigo, que serei fiel à minha promessa: no dia 18, esse dia tão
grande para você, posso dizer para nós, uma missa foi dita aqui para
associar-me às suas orações; pensei um momento em convocar para ela Boré,
Papau, aqueles de seus amigos que são nossos irmãos enfim; mas você não me
tinha recomendado nada a esse respeito, temia ir mais longe do que você queria.
Teria feito melhor, receio agora, seguindo essa inspiração.
Sinto bem intimamente, meu amigo, tudo o que me diz de sua dor. Concebo bem
assim uma dor cristã que curva-se primeiro em sua fraqueza humana, mas se
reergue em seguida, se envolve de esperança, e, fortificada por esse elemento
divino, continua andando na terra, mas olhando para o Céu. Concebo bem ainda
que suas lágrimas rolam ao mesmo tempo por sua venerada mãe e pela pena secreta
de seu coração; sinto melhor que o poderei dizer essa ligação íntima, essa
aproximação misteriosa de elementos em aparência opostos e, porém, que se
atraem. Conserve para sempre, meu caro Victor, todas essas lembranças: delas
lhe pedirão conta. Coloque junto o terço e a caixinha, purifique completamente
um pelo outro e que isso aí seja o emblema de sua felicidade futura, felicidade
terrestre, mas abençoada por Deus. Não lhe parece que essa corrente de terço
desenrolada nas mãos do cristão simboliza sua prece que, de anel em anel, vai
religar-se ao tronco do Senhor? Terei também um terço, mas gostaria que me
viesse de mão santa. Tive um terço antigamente, nos melhores dias de minha
vida, aos 20 anos, quando Deus tinha-me colocado no coração o pensamento santo
de consagrar-me a ele. Parti de Lisieux, onde morava então43, para
passar férias junto de minha mãe, com um bom e generoso amigo, mas muito mal
inspirado, pois sua luz não vinha do alto. Sem eu perceber, ele já tinha
abalado minha fé. No entanto, ao passar pelo Havre, onde tínhamos ido
atravessando o braço de mar, ajoelhei-me à noite, enquanto o outro já dormia, e
recitei o meu terço. Depois, depositei-o sobre a mesa e, não sei por que
distração, cheguei a colocar em cima dele o castiçal. Esqueci o terço por
baixo. Oito dias depois, todos os meus laços com Deus estavam rompidos. Minha
mãe e minha irmã prevenidas, de repente e propositalmente pelo amigo, que eu
iria, dentro de algumas semanas, para o Seminário, mostraram uma emoção à qual
não soube resistir. Retirei de Deus o que havia-lhe dado; no entanto,
hoje, eis-me de volta a ele, mas não tenho mais para devolver-lhe a minha
primeira juventude, nem minha saúde de outrora. Se deixa algo nos espinhais da
vida; servirei portanto a Deus, espero, mas não mais na tropa de elite. Perdi
minha patente.
Há pouco tempo falava para você de felicidade futura, obstinado que sou em ver
motivos de esperar em tudo o que o desespera. Com efeito não posso, meu amigo,
considerar diferentemente as advertências que lhe são feitas; parecem-me marcas
bem reais de interesse; não se grita às pessoas “vocês estão num caminho
errado” quando se deseja que se extraviem: que seu caráter, suas maneiras
habituais e particulares de ser não sejam logo entendidas, é inevitável e não
deveria durar; nossa pobre inteligência é tão limitada que começamos toda
aproximação através de mal-entendidos; mas nos explicamos aos poucos; o olho
discerne, no meio da escuridão, a realidade das coisas e dela se apodera
definitivamente. Se é assim entre nós, jovens que uma educação, princípios,
idéias comuns formaram, por assim dizer, num mesmo molde, como escapariam disso
homem e mulher, colocados em situação tão diferente no mundo da inteligência?
Seria horrível se, pobres criaturas, tivéssemos, para nos entender, somente a
inteligência; mas você sabe melhor do que ninguém que temos também o amor
e por aí, você e uma mulher verdadeiramente bondosa, verdadeiramente mulher,
não saberiam deixar de revelar-se completamente um ao outro. Não desanime,
portanto, meu caríssimo Victor, não quebre a cabeça contra os obstáculos. Passe
por cima. Há um, por exemplo, pelo qual você tem um pavor desmedido: a
indiferença, talvez pior, da Sra. Ch. O quê? Essa jovem mulher, você me falou,
é doce e bondosa e lhe dá medo. Ela não aceita você, admito. Então,
conquiste-a. Suplique-a ardentemente, lembre-lhe que, outrora, ela também amou
e que a ajuda de todos lhe foi necessária, que você precisa de seu apoio e que
ela pode tudo por você. Quem o impediria, diga-me, de torná-la assim dedicada a
você ou ao menos comprometida por delicadeza à neutralidade absoluta? Um pouco
de timidez, um pouco de orgulho talvez. Oh! meu amigo, pode-se comprar
sua companheira ao preço de muitos outros sacrifícios e não é você que recuará
diante daqueles. Deixaria indiferente qualquer outro acrescentar que é preciso,
meu amigo, submeter enfim tudo isso à vontade de Deus e procurar em sua
confiança nele mais calma e esperança, mas nos compreendemos. Não tenho medo de
me enganar. E, sendo que você tudo permite à minha viva afeição, oh! meu
querido Victor, não nos é lícito a nós, cristãos, querer, procurar aqui embaixo
uma felicidade imediata, e para essa felicidade em si mesma, não esqueça, deve
haver para nós uma só via, um só meio; você mesmo o falou, mil vezes; mas
nos dias de angústia e de ardente preocupação em que você está, pode-se
esquecer o fim, é por isso que o lembro.
Falamos aqui muitas vezes de seu irmão; pensei muito nele, sobretudo a respeito
do fato acontecido ultimamente em sua família. O afastamento não amortece o
golpe, ao contrário. É como uma pedra que cai. Quanto mais alto o ponto de onde
cai, mais dura é a pancada. Continue a nos informar sobre o que lhe diz
respeito. Gavard e eu lhe seremos muito agradecidos por isso. Esse coitado do
Gavard se encontrou outro dia posto por nós em estado de perplexidade. No
momento em que lhe chegava sua carta, não sei que circunstância me dera a
ocasião de escrever-lhe também, um pouco de ciúme, acho, que ele havia mostrado
a seu respeito, e enquanto suas solicitações amigáveis o apressavam de um lado,
as minhas o atingiam do outro. Mas, é meu medo, a hora de Deus ainda não soou
para ele. Seu amor pelo vago vai sempre crescendo. Seu dogma é a negação, seu
culto é a espera. Chega a acreditar que traz em si uma grande verdade que
deve manifestar-se um dia. Pede indulgência e respeito por sua gestação, e,
outro dia, com voz toda emocionada, suplicava-me para não tocar naquilo. Pobre
amigo que toma uma nuvem vazia flutuando vagamente no horizonte pela beira
sagrada da Pátria. Meu Deus! Como são fracos nossos esforços humanos; a fé move
as montanhas, mas tudo absolutamente nos é montanha! E se a mão de Deus não
empurra junto conosco, a montanha não se mexe!
Você tem mais um amigo, meu caro Victor, que não só não avança, como também
recua de modo terrível: é Sainte-Beuve. Sua colaboração no National o mata de toda maneira. Faz atualmente
profissão aberta de racionalismo, e seria pior ainda, se se acreditasse num artigo
sobre Casanova44 do 1º dia do mês, onde ostenta uma incrível
leviandade moral, concedendo a muito custo a liberdade dos atos humanos. O
número do 8 corrente contém um outro trabalho sobre os Pèlerins polonais que não é muito menos infeliz. Esperava que
ele nos falasse de Pellico, mas não. Deixou esse cuidado a não sei que escritor
vulgar, que tão bem desfigurou seu assunto que não sobra nada. Denuncio tudo
isso à sua terna afeição por ele. Ele escorrega com certeza. Segure-o, se
puder.
Alguns jovens católicos, liderados pelo Sr. Ozanam45, acabam de
realizar um pensamento bom e cristão. Fizeram uma tradução de Pellico,
que está sendo impressa e será vendida a ínfimo preço (30 centavos ao máximo).
Querem com ela inundar, se possível, nossa França, e você achará como eu, sem
dúvida, que melhor semente não poderia ser lançada nela. Sonhei que você
poderia ajudar também nisso, recebendo um depósito da obra, anunciando-a em seu
jornal46 e em todo lugar onde puder espalhá-la. É possível? Eu tinha
feito um pequeno trabalho sobre este livro, destinado a seu jornal, mas ele
expressou tão radicalmente meus sentimentos católicos que foi preciso renunciar
a meu escrito. Aliás, é muito longo demais. Não sei o que será dele. O Sr.
Gavard que não duvida de nada, me fez enviá-lo, num momento de irreflexão, à Revue Européenne47. Eu lhe pediria
perdão por tanto orgulho, se já de antemão não tivesse estado muito indiferente
a uma recusa prevista; não me mandaram resposta alguma, acho que fizeram bem.
Adeus, meu amigo, escreva-me quando puder. O Sr. Gerbet está aqui. Ainda não
consegui vê-lo. O Sr. de Montalembert está com você, acho, nesta hora. Ele
disse-me antes de sua partida que voltaria por Angers, acrescentando com
insistência repetida que via como uma felicidade o fato de vê-lo por ali. O Sr.
de Lacordaire pregou no Colégio Stanislas, no dia de São Pedro, sobre a Igreja;
é a maior e a mais elevada coisa que jamais tenha ouvido. Obrigado pela
lembrança que duas vezes você dá à minha mãe. Obrigado por seus votos a esse
respeito. Eles me vão direto ao coração e pelo caminho de uma afeição bem
terna, bem pura, espero. Adeus de novo. Perdão por esta carta extravagante. Não
vou repetir isso. Tenho desde ontem L’bomme de
désir.
Lembrança e respeito, sabe: a você, tudo o que quiser.
Léon Le Prevost
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