No hábito
de estarem juntos nos exercícios comuns, haurir a cordialidade fraterna que faz
a felicidade de uma comunidade”. Narração detalhada da peregrinação à montanha da
Salete. Detalhes pitorescos sobre os cansaços da viagem.
Allevard,[1 e 2 de agosto] de 1865
Após uma
semana de caminhada, eis-nos instalados em Allevard, tomando banhos sulfurosos,
engolindo água enxofrada, absorvendo uma atmosfera de enxofre: deveriam se
apressar a chegar todos aqui para partilhar nossa sorte de fósforos. Apesar de
tudo isso, a saúde de nosso caro Padre é satisfatória. Rezem muito à Nossa
Senhora da Salete, e tornará nosso caro Padre capaz de passar um bom inverno e
de responder a todos os mil assuntos que vamos pedir-lhe para resolver em todos
os instantes do dia. Após esta apresentação da situação presente, deixem-me
voltar ao passado, para permitir-lhes fazer a viagem conosco.
Na saída,
estava com uma certa tristeza: a situação de nossa Comunidade era pouco
regular. Tinha censuras pessoais a fazer a mim mesmo a esse respeito, e sentia
que, afastando-me, o pouco que ainda sobrava ia desaparecer. Falta-nos apego aos
exercícios de Comunidade, porque não sentimos seu efeito direto sobre as nossas
obras. Nossa ilusão é de que nossa santificação não depende dos exercícios de
Comunidade e que o êxito de nossas obras não depende de nossa santificação. Não
quero me estender para demonstrar essas ilusões; quero somente manifestar-lhes
minha impressão ao deixá-los, e expressar-lhes que a força do religioso é
muitas vezes colocada por Deus nos cabelos, quer dizer na fidelidade aos
exercícios, e que essa obediência nas coisas pequenas lhe é muito agradável.
Ficaria, portanto, muito feliz ao saber que vocês são exatos nos exercícios de
Comunidade e que, nesse costume de estarem juntos, haurem a cordialidade
fraterna que faz a felicidade de uma Comunidade. Como de costume, caros irmãos,
não estou correndo; detenho-me nas impressões de saída [segunda-feira, 25 de
julho de 1865], sem ter saído do lugar. Enfim, eis que estamos no vagão, o trem
sai, estamos a caminho de Chalon. Ficamos bastante livres em nosso
compartimento, pudemos conversar, e, quando estamos com o bom Pai e o Sr. de
Varax, conversando sobre você e a Comunidade, é bem agradável. Em Chalon, fomos
acolhidos bondosamente pelo irmão do Sr. de Varax e, no dia seguinte
[terça-feira, dia 26], foi preciso partir para Grenoble e nos separar desse
muito querido Sr. de Varax, que deixamos num estado de saúde satisfatório, não
cansado demais pela caminhada. Chegamos em Grenoble às 5h30 da noite. Nosso bom
Pai não estava cansado demais; pudemos, sem temeridade, partir no dia seguinte,
quarta-feira [dia 27] às 6h30, após a missa, para Corps. Estamos na parte mais
cansativa da viagem. Estávamos numa viatura ruim, a chuva caia em torrentes. O trajeto
durou 8 horas e trinta. Felizmente, quase não havia chovido em Corps e
podíamos, sem perigo, fazer a ascensão da Salete. O trajeto era de duas horas e
trinta. Usamos mulos. Saímos em companhia de um eclesiástico, de duas
religiosas, de um senhor e de quatro senhoras, no total, dez pessoas. A subida
se fez sem acidente. A montanha estava coberta de nuvens; foi preciso entrar
nelas, quer dizer, numa neblina espessa a ponto de nada distinguir a quinze
passos de distância. Pensávamos estar em novembro. Enfim,
após um pouco de chuva, chegamos à Santa Montanha, exaustos de cansaço, mas
felizes por termos um pequeno sofrimento a oferecer a nossa Santa Mãe das
Dores. Fizeram-nos entrar na hospedaria, nos deram pequenos quartos, como os de
Vaugirard, e, uma vez depositados nossos embrulhos, fomos adorar o Santíssimo
Sacramento na magnífica igreja de Nossa Senhora. Em seguida, descemos ao
terreno da aparição, onde se achavam três grupos de bronze de tamanho natural,
da mais perfeita execução. O primeiro representava Nossa Senhora sentada na
pedra da fonte. Em baixo, a fonte milagrosa corre continuamente. Quanta alegria
sentimos ao ajoelharmo-nos aos pés dessa Santa Mãe que chora, com a cabeça nas
mãos! Quando pensamos que chorou assim por nossa causa, nos sentimos
emocionados e choramos com ela. Gostaríamos de poder parar essas lágrimas. O
meio é purificar-se do pecado e levar os outros a se purificarem. Ela chora
porque não há conversão; convertamo-nos, e trabalhemos em vista da salvação dos
outros. A quatro passos dessa imagem, se encontra Nossa Senhora de pé, falando
aos pequenos pastores. A Santíssima Virgem tem os braços cruzados, um
crucifixo, tenazes, pregos no peito. Encarrega as crianças de anunciar a todo o
seu povo, quer dizer, a todos os cristãos, a notícia da ira de Deus, se não há
conversão. Falando aos pastores, dirigia-se a todos e suas lágrimas corriam sem
interrupção. De joelhos ao pé desse grupo, recebemos as palavras ditas aos
pastores e, considerando a atitude e o rosto desolado de nossa Santa Mãe,
sentimos os olhos encherem-se de lágrimas e o coração se penetrar de horror
pelo pecado que causa tanta dor a nossa Mãe. Deixando esse grupo, passamos o
ribeiro por onde passou a Santa Virgem e subimos pelo caminho que percorreu,
onde há 14 cruzes plantadas. Rezamos, então, com a Santíssima Virgem a via
Sacra, em união de expiação. Essa subida da via sacra, que é interrompida em
dois lugares, é, no dizer dos Padres da Terra Santa que vieram ao santuário da
Salete, a figura exata do caminho do Calvário em Jerusalém. O
que prova que, ao percorrer esse caminho, a Santa Virgem quis traçar uma via sacra
e prevenir seus filhos de que, para secar suas lágrimas, é preciso segui-la na
expiação e, após essa expiação, subir ao Céu com Ela. Ao chegarmos ao outeiro
que está em cima da via sacra, entramos na capela da Assunção, onde se acha o
grupo que representa a Santíssima Virgem.
Após ter
deitado sobre a terra olhares de misericórdia, ela é percebida, com os olhos
voltados para o céu, pedindo piedade pelos pecadores. Nessa capela,
experimentamos sentimentos de consolação, pensamos no Céu, onde está nossa Mãe;
nos sentimos bem nesse lugar de onde se elevou para a pátria; pedimos para
segui-la. Saindo dessa capela, voltamos à Virgem sentada, à Virgem que fala às
crianças, à via sacra, e continuamos assim, sem podermos nos decidir a
abandonar esses lugares tão queridos. Mas, no caso de uma pessoa ou uma coisa
nos reclamar, partimos com a intenção de voltar o quanto antes. Essa terra é
terra abençoada. Sente-se que nossa Santa Mãe passou por ali, e é impossível
decidir-se a deixar seus rastros: bebemos a água milagrosa, colhemos flores no
caminho que percorreu nossa Mãe. Gostaríamos de ficar para sempre nesse lugar
abençoado. Esse sentimento é tão vivo, que uma senhora de Grenoble, que vinha
muitas vezes à montanha da Salete, quis ser enterrada na montanha e pediu por
testamento que se escrevesse no seu túmulo estas palavras: Ela descansa onde
seu coração sempre esteve.
Deixemos
esse lugar por um momento. São 6 horas. Após uma rápida visita dos Santos
Lugares, o sino anuncia o jantar às 6h30. Éramos uns trinta à mesa, entre os
quais um grande número de eclesiásticos. Não estávamos com os irmãos (comem à
parte). Após o jantar, tornamos a visitar os Santos Lugares, mas chovia. Às
oito horas, o sino anunciou a oração; todos foram à igreja. O Padre Diretor do
exercício fez diversas recomendações de orações. Recitamos cinco dezenas do
terço, fizemos a oração da noite; então, o Padre, numa breve instrução de 17
minutos, deu a matéria da meditação do dia seguinte. Terminamos com um cântico
a Nossa Senhora da Salete. Às 9 horas, deitar. Às 4h30, levantar para a oração
da manhã, a meditação, a Santa Missa; às 7h30, desjejum; voltamos, em seguida,
aos Santos Lugares (quinta-feira, dia 28 de julho).
Compramos
um grande vaso de lata, de dois litros e vamos enchê-lo na fonte. Compramos
três fotografias, representando os três grupos de bronze. Às 11 horas (isso
acontece todos os dias na mesma hora), um Padre vem aos Santos Lugares para
contar toda a história da aparição em todos os seus pormenores. Essa narração
foi feita de uma maneira muito simples e muito interessante; durou quarenta e
cinco minutos, sem cansar ninguém. Estávamos sentados no chão, ouvindo o Padre
que falava, em pé.
Imaginei, então, Nosso Senhor ensinando a multidão no
deserto. Ao meio-dia, almoço. Em seguida, cada um vai para onde sua atração o
leva. O sol acaba de apontar, mas as nuvens ainda cobrem as montanhas e o tempo
está incerto. Os romeiros se dispersam, uns sobem no outeiro vizinho, outros em
outro outeiro, a quarenta minutos de distância, mas a conversa sempre tem por
objeto a celeste aparição. Não pude subir: minhas pernas se ressentiam demais
da subida com o mulo. Fiquei numa pequena elevação, avistando os Santos
Lugares, e sentei, contemplando todas essas coisas maravilhosas: esses Santos
Lugares, essa igreja, esse hospício, esses Padres da Salete, essa afluência de
peregrinos, essa terra onde se sente a Santíssima Virgem ainda presente. Às 3
horas, era previsto fazer a via sacra, mas, a partir das 2h30, a chuva começou
a cair abundantemente. Retiramo-nos na capela da Assunção, meditando sobre
todas essas coisas. Em seguida, visitamos a igreja, que é muito ampla e num
lindíssimo estilo românico. No altar-mor aparecem esses castiçais das oficinas
de Vaugirard. As capelas são cheias de ex-votos. Essa igreja é toda de granito
e de mármore tirados dos arredores. Todas as construções custaram um milhão e
trezentos mil francos. Os três grupos em bronze, de 45.000f, foram doados por
uma só pessoa. À noite, às 6h30, jantar; 8 horas, terço, oração, instrução,
cântico; 9 horas, deitar. Sexta-feira [29 de julho] 4h30, levantar, meditação;
7 horas, Santa Missa no altar-mor, assim como na véspera, celebrada por nosso
Padre Superior (eu era o coroinha). Rezamos muito por nossa querida Comunidade,
por todos vocês, por todas as nossas obras. Pensava em vocês que, conosco,
faziam uma novena a nossa Santa Mãe. Posso dizer que, nesses Santos Lugares, a
oração é uma graça dada a todos: é fácil, doce, agradável. Após a Santa Missa,
via sacra. Desjejum às 8 horas. O tempo era tolerável, tínhamos de partir,
nosso Pai num mulo, eu, a pé. O mulo parte, é preciso seguir, é preciso
deixar os Santos Lugares. Olhei para trás muitas vezes e ainda via a Virgem da
Assunção. Enfim uma nuvem acabou escondendo-a e tivemos que avançar, com o
coração triste. Sentia o pesar de uma criança que deixa sua mãe, e, como uma
criança, chorava. Desci assim a montanha durante duas horas. Os sítios eram
muito lindos, mas eu não me importava com isso. Tinha muita outra coisa no
coração. Esse pesar não cessou; não posso pensar sem emoção na Santa Montanha.
Sexta-feira, às 10 horas, estávamos em Corps; às 6 horas, em Grenoble. Sábado
[dia 30 de julho], saída para Allevard. Chegada às 2 horas. Dificuldade para
achar um alojamento conveniente. Enfim, no dia seguinte, domingo [dia 31], às
10 horas, achamos um hotel retirado, bem situado, bem tranqüilo. Instalamo-nos
ali. No dia seguinte, segunda-feira [1o de agosto], (dia de hoje),
nós, sofremos por todo o corpo e começamos a poder tomar uma pena para
lhes escrever. Pensam que demoramos para tanto? Cuidado, para não caírem nesse
juízo temerário: são 10 horas da noite, e sou forçado a parar. Até amanhã. Boa
noite.
Terça-feira,
2 de agosto. Laudetur Jesus Christus : estou de pé. Nosso Pai rezou sua
missa (sou eu o coroinha, todos os dias). Seu estado de saúde é bom. O regime
do enxofre o perturbou um pouco, mas não o bastante para que não possa
continuá-lo. Há motivo para esperar que, por suas orações, o tratamento dos
banhos terá bom resultado para ele.
Adeus,
caros amigos, nosso Pai e eu, os abraçamos a todos com muita ternura. Teríamos
gostado de tê-los na Salete, mas a Santíssima Virgem, não duvido, lhes dará
grandes graças. Insistam muito para que o bom irmão Chaverot vá à montanha da
Salete, para que reze muito, para obter a graça de fazer essa romaria.
Apresentem
minhas amizades a todos os amigos.
Seu
devotado irmão em
São Vicente de Paulo
Paillé
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