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Jean-Léon Le Prevost
Cartas

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  • Cartas 101 - 200 (1843 - 1850)
    • 152 - ao Sr. Maignen
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152 - ao Sr. Maignen

Notícias de sua irmã, Dona Salva, e de seus filhos. A má saúde do Sr. Le Prevost é uma provação pesada. Sua dedicação não pode mostrar todo o seu valor. Fertilidade dessa cruz que o Senhor lhe impõe. Ele entende melhor que a união a Deus permite a fertilidade da ação apostólica. Aos desejos de ação social do Sr. Maignen não falta  ideal, mas o Sr. Le Prevost mostra-lhe os limites e as ilusões dos mesmos. Para remediar as misérias do tempo, precisa-se de um maior realismo e, sobretudo, de sermos repletos, como os Apóstolos no Cenáculo, do Espírito de luz e de força.

 

Duclair, 30 de agosto de 1846

            Agradeço-o, caríssimo amigo, pela amável delicadeza com que você esquadrinha minhas disposições interiores, para  remediar o que lhe parece deficiente. Essa atenção de um coração para um outro é um dos mais comoventes ofícios de uma verdadeira afeição. No entanto, não estou tão triste como você o pensa, caro amigo. Vejo com felicidade que nosso pequeno lar familiar, que acreditava para muito tempo derrubado pela morte de minha bem-amada mãe, se reforma um pouco e não será completamente destruído. Reencontrei em minha irmã esses sentimentos tão ternos e tão devotados, que nos apegaram invariavelmente um ao outro desde nossa infância e que nunca a menor nuvem perturbou. Seus filhos cresceram e seguem em frente. Seu filho, em particular, está bem mudado para melhor,  é estudioso e ajuizado. Com seus 17 anos apenas, já tem estatura de homem, e tudo, na sua voz, no seu olhar, nos seus atos, revela esses primeiros raios da inteligência que toma conhecimento de si própria e do despertar do coração ao sopro do sentimento. Esse instante é decisivo na vida e não passa sem interessar vivamente no seio de uma família. Infelizmente, reunidos só por alguns instantes, vamos logo nos separar; e eu que, por débil que seja, deveria ser o ponto de união dessa pequena sociedade, vou me afastar dela por muito tempo talvez. Muitas vezes, minha irmã se detém no pensamento de  que eu poderia me fixar perto dela e dar-lhe, senão um grande apoio, ao menos as consolações de uma vida íntima e comum; mas eu conheço bem os obstáculos invencíveis que se opõem à nossa reunião, fico calado, portanto, e abstenho-me de encorajar um projeto que não pode concordar com outras obrigações.

 

Não se assuste, caro filho, pela debilidade por demais habitual de meu corpo e de meu espírito; tantos golpes me feriram ao mesmo tempo, neste terrível ano, que me curvei sob o choque; mas, se aprouver ao Senhor que viva mais um pouco de tempo e trabalhe, segundo o que está ao meu alcance, na sua obra, ele me devolverá alguma força com os dons que sua sabedoria me quiser conceder. Curvar-se sob sua mão, quando ela nos fere, não é fraqueza, mas submissão; então a atividade e os impulsos de vida são fora de tempo e supérfluos; é preciso esmorecer e aguardar. Se a hora de se levantar chegar, ele soprará de novo no coração a inspiração, a força e o amor. Vou retornar muito frágil ainda de corpo, mas decidido a fazer tudo o que não me será impossível e a compensar minha fraqueza por minha boa vontade. Não me pergunto se uma estada prolongada aqui me poderia ser salutar; a aproximação do inverno tirará dos campos muitas de suas vantagens. Aliás, razões graves, você sabe, me chamam de volta para Paris. Irei, portanto, no mais tardar, em meados de setembro, mais cedo, se o irmão Myionnet, de quem espero uma carta, o julgar conveniente.

            Você estranha, caro filho, que o passo dado por mim não tenha sido o momento de uma transformação luminosa, que teria engrandecido meu ser e dobrado em mim as potências de ação e de dedicação. Não saberia sondar os segredos do Senhor, nem pedir-lhe conta de suas condutas a respeito de seus servidores. Desejei desde há muito tempo me doar todo a Ele, fiz o que dependia de mim para pertencer-lhe sem reserva. Ele aceitou o sacrifício? Interiormente, acredito que sim, apesar de, aparentemente,  me tratar com severidade. Quem sabe, caro amigo, se as amarguras que choveram sobre mim não são as gotas preciosas do divino cálice, os primeiros passos no caminho real da cruz, o selo da aliança mais íntima com o Celeste Esposo? Uma voz secreta e consoladora o murmurou no fundo do meu coração, durante esses dias de langor e de tristeza, e provei algumas vezes a suavidade ainda desconhecida da cruz; por esse sinal, acreditei reconhecer meu Mestre e o bendisse por não ter desprezado minha miséria. Como os pensamentos de Deus são diferentes dos nossos, e como nos é difícil entrar no seu espírito! Tinha sonhado, como você, só com dedicação, trabalhos, ardentes caridades, e, quando chega, enfim, o dia do sacrifício, meu corpo se abate, suas faculdades adormecem, meu impulso cai, a ação exterior quase me é interditada; mas, em compensação, suporto em mim a operação interior do Senhor, feliz, caro filho, e lembro-me agora desta palavra que você escreveu para mim, sabe, num santinho perdido: Sustinuit te dilectus, sustine tu dilectum.150

 

            O que já se passou em mim neste sentido, caro amigo, leva-me a pensar, entre outras razões, que as idéias contidas na sua carta não são inteiramente justas. Não creio que estejamos em dificuldade, o Sr. Myionnet e eu, porque damos tempo demais à oração, à meditação, à leitura dos velhos livros e que negligenciamos estudar as necessidades, as misérias profundas de nosso tempo, seja misturando-nos a todas as dores morais e físicas dos que sofrem, seja, pelo menos, contemplando-as nos livros que, segundo você, as registram. É um fato incontestável e não contestado, mesmo por você, que não se conhece a Deus e a si mesmo e ao mundo, senão pela oração. Em Deus contempla-se o tipo infinito de toda beleza, de toda perfeição moral, de toda virtude; em si mesmo, reencontra-se o germe e o início de todos os erros, de todos os vícios, de todos os crimes. Quem não estudou muito tempo neste duplo livro, quem não volta a ele muitas vezes, nunca entenderá bem o mundo, nunca terá força e luz superior para influir sobre ele. A condição essencial e primeira de toda ação exterior está, portanto, ali, tanto para os místicos como para os homens de dedicação; é uma lei invariável que seguiram nossos predecessores, que seguem hoje os servidores de Deus nos mais altos graus da santa hierarquia, e que seguirão ainda os que vão querer, como eles, glorificar a Deus e servir seus irmãos. Você não nega este ponto, mas você pede que entre o Evangelho, a Imitação e os outros livros ascéticos, achemos espaço para as obras de imaginação do tempo, a fim de ver nelas as pragas horríveis da humanidade aviltada, de nos entusiasmar por ela com uma viva compaixão, e de irmos com mais ardor e luz ao seu socorro. Não creio, de jeito nenhum, caro amigo, que os sonhos de uma imaginação delirante, as concepções monstruosas ou fantásticas de espíritos depravados, fora da verdade quando aspiram ao belo, igualmente exagerados e falsos em suas idealizações do mal, não, não creio que eles sejam as fontes de escol onde se deva estudar o mundo em suas misérias, como no seu aspecto positivo. Se for preciso sair do estudo contemplativo e verificar nas aplicações reais as revelações da especulação interior, é nas estórias que correm nas ruas, é nos tribunais, é nos tristes antros do vício e do crime que se podem fazer úteis e proveitosas observações, pois ali estão, não mais a ficção nem as fantasias esquisitas do espírito, mas o fato e o real da vida. De resto, a partir do dia em que aprazeria ao Senhor aumentar nosso número, ampliar nossa tarefa e enviar-nos aos infelizes pecadores como instrumentos de sua misericórdia, Ele abriria nossos olhos pelo contato com a matéria confiada aos nossos trabalhos; Ele daria aos nossos corações a compaixão imensa que apaixona-se pelas almas  afogadas na lama. Então, creia-me, as pretensas revelações de seus autores seriam bem miseráveis diante das clarezas do real e das iluminações da graça, e iríamos arrepender-nos muito da atenção, talvez perigosa, que lhes teríamos dado. Para hoje, aliás, e voltando à esfera de nossa vida atual, para que servem visões ambiciosas sobre um futuro do qual só Deus tem o segredo? Quem entre nós sabe a que Ele nos destina, e quem pode prever com certa precisão suas intenções sobre nós? Não iria censurar seu pensamento, caro amigo, se, percebendo nitidamente uma meta para as almas de zelo e de dedicação, você julgasse dever marcá-la com os sinais que manifestam a verdade e fazem reconhecer o espírito de Deus. Quanto ao presente, não saberia ver ainda em sua opinião senão um pressentimento longínquo, um desejo, uma aspiração do coração, em vista de uma melhora vaga e indefinida do estado social; tal como ela seja, no entanto, a acolhi com simpatia, como um testemunho da preocupação de seu espírito para tudo o que tende ao bem. Vejo nela também esse doce hábito, que nós combinamos entre nós, de abrir com simplicidade nosso coração para deixar o amigo ler  o que  se passa; faça sempre assim, caro filho, e tenha a certeza de que sempre será entendido. Hoje, o irmão Myionnet e eu só temos que fazer humildemente as obras modestas e já pesadas para nós que o Senhor nos confiou. Se Ele dignar-se emprestar-nos vida e agregar-nos alguns amigos, esforçar-nos-emos para estabelecer entre nós um verdadeiro espírito de união, de zelo e de dedicação, e para cimentar o laço de vida que assegurará nosso futuro. Então, somente então, para aqueles que virem esta hora, o momento terá chegado de ir, como os apóstolos saindo do cenáculo, às diversas missões que o divino Mestre abrirá diante deles; pois, você sabe, caro amigo, somente no cenáculo foram dadas aos discípulos do Senhor a luz, a chama interior e a invencível coragem; nós também devemos passar por este santo lugar.

     Como esta carta é longa e séria, caro amigo; teria gostado de terminá-la com um pouco de doce efusão para que você reencontre o coração de seu amigo perto do seu e sinta um pouco essa afeição de que você e eu temos necessidade; mas estou muito cansado e amanhã, logo cedo, parto para passar todo o dia no campo com os meus. Pois, não vá pensar, após ter lido esta grave epístola, que eu seja austero a ponto de dar medo, sempre meditando, orando, lendo; de jeito nenhum. Faço pouca coisa a não ser passeios e conversas alegres com minha irmã e seus filhos; falamos às vezes um pouco em tom racional ou com ternura; na maioria das vezes nossas conversas são um passa-tempo, cantamos cânticos, o da Santa Família em particular que é muito popular por aqui, ou, então, lemos livros de divertimento. À noite, jogamos alguma partida e vamos dormir. Você vê, caro filho, retomei rápido a vida de família e, vendo como passam os dias, sinto bem que essa vida é a mais comum, a mais fácil, a de todos; ouso, no entanto, aspirar a uma outra mais austera e mais alta; espero que Deus não me rechaçará dela. Não preciso dizer que sua parte está reservada nesses dias, os quais lhe esboço aqui um pouco incompletamente. Os meus familiares, aliás, para minha grande alegria, também não esquecem o que pertence ao Senhor.

 

            Adeus, amigo, filho também, pois não posso tão depressa esquecer esse nome; peço para isso um pouco de tempo. Adeus, caríssimo filho, rezo sempre e muito por você, reze também por mim; é uma tão doce maneira de se relembrar dos amigos e de reavivar sem cessar nossa afeição por eles. Abraço-o com ternura e sou em J. e M.

 

            Seu afeiçoado irmão

                                               Le Prevost

 





150 O Senhor bem-amado te sustentou, à tua vez suporta o bem-amado.





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