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Jean-Léon Le Prevost
Cartas

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  • Cartas 1 - 100 (1827 - 1843)
    • 19 - ao Sr. Pavie
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19 - ao Sr. Pavie

Amizade fundada em Deus. Como sofrer como cristão. O terço do Sr. Le Prevost. Circunstância nas quais o Sr. Le Prevost cessou toda prática religiosa e abandonou sua vocação. Encoraja seu amigo a perseverar na escolha de uma esposa. Notícias de Gavard, Sainte-Beuve, Montalembert, Lacordaire. Ozanam e seus amigos traduziram a obra de Pellico, Mes Prisons, da qual o Sr. Le Prevost um exame crítico.

 

12 [de julho] de 183342

            Suas cartas me emocionam tão intimamente, meu amigo, que fazem nascer em mim a necessidade de uma efusão imediata, de um desabafo imenso cuja impetuosidade e excesso  controlo a duras penas. Mas o que, antes de tudo, torna-me esta emoção preciosa é que vejo nela um dom da graça, um encorajamento, porque encontro  um perfume celeste que diz bastante de onde descende; depois, minha alegria  duplica-se por reação, pois, meu amigo, a ternura infinita de sua carta não me deixa dúvida a respeito. Eu também tenho algum poder sobre você, eu também pareço-lhe um presente de Deus. Oh! como me faz bem servi-loem alguma coisa, a você que para mim tanto significa, a você cuja ação me teria oprimido se não a tivesse suportado com tanto amor e se uma voz não me tivesse gritado: receba, receba sempre, é Deus que dá. Quando uma vez se colocaram nesse caminho todas as suas afeições, quando se sentiu tudo o que elas haurem de energia e de pureza ao harmonizarem-se com o amor divino, será possível deixá-las ainda se extraviarem sozinhas? É possível preferir mil sons chocando-se e discordantes ao concerto celeste de que se participou um instante? Eu bem sei a resposta. O sol brilha quando absorve e dissipa as nuvens, senão o tempo fica fechado, o ar carregado; chega-se à noite sempre esperando o dia. Por isso, sentindo todo o meu ser que se renova, minha alma que se refaz, todos os meus sentimentos primitivos perdidos depois, e que eu acreditava apagados, renascerem pouco a pouco sob o sopro de Deus, deixando, enfim, todo esse trabalho interior realizar-se em mim, eu, no entanto, tremo às vezes e digo: se me mexo, a obra ainda frágil vacila e desmorona; então levanto os olhos para o alto, em seguida penso em você e minha confiança retorna.

 

            Pode contar, meu amigo, que serei fiel à minha promessa: no dia 18, esse dia tão grande para você, posso dizer para nós, uma missa foi dita aqui para  associar-me às suas orações; pensei um momento em convocar para ela Boré, Papau, aqueles de seus amigos que são nossos irmãos enfim; mas você não me tinha recomendado nada a esse respeito, temia ir mais longe do que você queria. Teria feito melhor, receio agora, seguindo essa inspiração.

 

            Sinto bem intimamente, meu amigo, tudo o que me diz de sua dor. Concebo bem assim uma dor cristã que curva-se primeiro em sua fraqueza humana, mas se reergue em seguida, se envolve de esperança, e, fortificada por esse elemento divino, continua andando na terra, mas olhando para o Céu. Concebo bem ainda que suas lágrimas rolam ao mesmo tempo por sua venerada mãe e pela pena secreta de seu coração; sinto melhor que o poderei dizer essa ligação íntima, essa aproximação misteriosa de elementos em aparência opostos e, porém, que se atraem. Conserve para sempre, meu caro Victor, todas essas lembranças: delas lhe pedirão conta. Coloque junto o terço e a caixinha, purifique completamente um pelo outro e que isso aí seja o emblema de sua felicidade futura, felicidade terrestre, mas abençoada por Deus. Não lhe parece que essa corrente de terço desenrolada nas mãos do cristão simboliza sua prece que, de anel em anel, vai religar-se ao tronco do Senhor? Terei também um terço, mas gostaria que me viesse de mão santa. Tive um terço antigamente, nos melhores dias de minha vida, aos 20 anos, quando Deus tinha-me colocado no coração o pensamento santo de consagrar-me a ele. Parti de Lisieux, onde morava então43, para passar férias junto de minha mãe, com um bom e generoso amigo, mas muito mal inspirado, pois sua luz não vinha do alto. Sem eu perceber, ele já tinha abalado minha fé. No entanto, ao passar pelo Havre, onde tínhamos ido atravessando o braço de mar, ajoelhei-me à noite, enquanto o outro já dormia, e recitei o meu terço. Depois, depositei-o sobre a mesa e, não sei por que distração, cheguei a colocar em cima dele o castiçal. Esqueci o terço por baixo. Oito dias depois, todos os meus laços com Deus estavam rompidos. Minha mãe e minha irmã prevenidas, de repente e propositalmente pelo amigo, que eu iria, dentro de algumas semanas, para o Seminário, mostraram uma emoção à qual não soube resistir. Retirei de Deus o que  havia-lhe dado; no entanto, hoje, eis-me de volta a ele, mas não tenho mais para  devolver-lhe a minha primeira juventude, nem minha saúde de outrora. Se deixa algo nos espinhais da vida; servirei portanto a Deus, espero, mas não mais na tropa de elite. Perdi minha patente.

 

            Há pouco tempo falava para você de felicidade futura, obstinado que sou em ver motivos de esperar em tudo o que o desespera. Com efeito não posso, meu amigo, considerar diferentemente as advertências que lhe são feitas; parecem-me marcas bem reais de interesse; não se grita às pessoas “vocês estão num caminho errado” quando se deseja que se extraviem: que seu caráter, suas maneiras habituais e particulares de ser não sejam logo entendidas, é inevitável e não deveria durar; nossa pobre inteligência é tão limitada que começamos toda aproximação através de mal-entendidos; mas nos explicamos aos poucos; o olho discerne, no meio da escuridão, a realidade das coisas e dela se apodera definitivamente. Se é assim entre nós, jovens que uma educação, princípios, idéias comuns formaram, por assim dizer, num mesmo molde, como escapariam disso homem e mulher, colocados em situação tão diferente no mundo da inteligência? Seria horrível se, pobres criaturas, tivéssemos, para nos entender, somente a inteligência; mas você  sabe melhor do que ninguém que temos também o amor e por aí, você e uma mulher verdadeiramente bondosa, verdadeiramente mulher, não saberiam deixar de revelar-se completamente um ao outro. Não desanime, portanto, meu caríssimo Victor, não quebre a cabeça contra os obstáculos. Passe por cima. Há um, por exemplo, pelo qual você tem um pavor desmedido: a indiferença, talvez pior, da Sra. Ch. O quê? Essa jovem mulher, você me falou, é doce e bondosa e  lhe dá medo. Ela não aceita você, admito. Então, conquiste-a. Suplique-a ardentemente, lembre-lhe que, outrora, ela também amou e que a ajuda de todos lhe foi necessária, que você precisa de seu apoio e que ela pode tudo por você. Quem o impediria, diga-me, de torná-la assim dedicada a você ou ao menos comprometida por delicadeza à neutralidade absoluta? Um pouco de timidez, um pouco de orgulho talvez. Oh! meu amigo,  pode-se comprar sua companheira ao preço de muitos outros sacrifícios e não é você que recuará diante daqueles. Deixaria indiferente qualquer outro acrescentar que é preciso, meu amigo, submeter enfim tudo isso à vontade de Deus e procurar em sua confiança nele mais calma e esperança, mas nos compreendemos. Não tenho medo de me enganar. E, sendo que você tudo permite à minha viva afeição, oh! meu querido Victor, não nos é lícito a nós, cristãos, querer, procurar aqui embaixo uma felicidade imediata, e para essa felicidade em si mesma, não esqueça, deve haver para nós uma só via, um só meio; você mesmo o falou,  mil vezes; mas nos dias de angústia e de ardente preocupação em que você está, pode-se esquecer o fim, é por isso que o lembro.

 

            Falamos aqui muitas vezes de seu irmão; pensei muito nele, sobretudo a respeito do fato acontecido ultimamente em sua família. O afastamento não amortece o golpe, ao contrário. É como uma pedra que cai. Quanto mais alto o ponto de onde cai, mais dura é a pancada. Continue a nos informar sobre o que lhe diz respeito. Gavard e eu lhe seremos muito agradecidos por isso. Esse coitado do Gavard  se encontrou outro dia posto por nós em estado de perplexidade. No momento em que lhe  chegava sua carta, não sei que circunstância me dera a ocasião de escrever-lhe também, um pouco de ciúme, acho, que ele havia mostrado a seu respeito, e enquanto suas solicitações amigáveis o apressavam de um lado, as minhas o atingiam do outro. Mas, é meu medo, a hora de Deus ainda não soou para ele. Seu amor pelo vago vai sempre crescendo. Seu dogma é a negação, seu culto  é a espera. Chega a acreditar que traz em si uma grande verdade que deve manifestar-se um dia. Pede indulgência e respeito por sua gestação, e, outro dia, com voz toda emocionada, suplicava-me para não tocar naquilo. Pobre amigo que toma uma nuvem vazia flutuando vagamente no horizonte pela beira sagrada da Pátria. Meu Deus! Como são fracos nossos esforços humanos; a fé move as montanhas, mas tudo absolutamente nos é montanha! E se a mão de Deus não empurra junto conosco, a montanha não se mexe!

 

            Você tem mais um amigo, meu caro Victor, que não só não avança, como também recua de modo terrível: é Sainte-Beuve. Sua colaboração no National o mata de toda maneira. Faz atualmente profissão aberta de racionalismo, e seria pior ainda, se se acreditasse num artigo sobre Casanova44 do 1º dia do mês, onde ostenta uma incrível leviandade moral, concedendo a muito custo a liberdade dos atos humanos. O número do 8 corrente contém um outro trabalho sobre os Pèlerins polonais que não é muito menos infeliz. Esperava que ele nos falasse de Pellico, mas não. Deixou esse cuidado a não sei que escritor vulgar, que tão bem desfigurou seu assunto que não sobra nada. Denuncio tudo isso à sua terna afeição por ele. Ele escorrega com certeza. Segure-o, se puder.  

 

            Alguns jovens católicos, liderados pelo Sr. Ozanam45, acabam de realizar um pensamento bom  e cristão. Fizeram uma tradução de Pellico, que está sendo impressa e será vendida a ínfimo preço (30 centavos ao máximo). Querem com ela inundar, se possível, nossa França, e você achará como eu, sem dúvida, que melhor semente não poderia ser lançada nela. Sonhei que você poderia ajudar também nisso, recebendo um depósito da obra, anunciando-a em seu jornal46 e em todo lugar onde puder espalhá-la. É possível? Eu tinha feito um pequeno trabalho sobre este livro, destinado a seu jornal, mas ele expressou tão radicalmente meus sentimentos católicos que foi preciso renunciar a meu escrito. Aliás, é muito longo demais. Não sei o que será dele. O Sr. Gavard que não duvida de nada, me fez enviá-lo, num momento de irreflexão, à Revue Européenne47. Eu lhe pediria perdão por tanto orgulho, se já de antemão não tivesse estado muito indiferente a uma recusa prevista; não me mandaram resposta alguma, acho que fizeram bem.

 

            Adeus, meu amigo, escreva-me quando puder. O Sr. Gerbet está aqui. Ainda não consegui vê-lo. O Sr. de Montalembert está com você, acho, nesta hora. Ele disse-me antes de sua partida que voltaria por Angers, acrescentando com insistência repetida que via como uma felicidade o fato de vê-lo por ali. O Sr. de Lacordaire pregou no Colégio Stanislas, no dia de São Pedro, sobre a Igreja; é a maior e a mais elevada coisa que jamais tenha ouvido. Obrigado pela lembrança que duas vezes você dá à minha mãe. Obrigado por seus votos a esse respeito. Eles me vão direto ao coração e pelo caminho de uma afeição bem terna, bem pura, espero. Adeus de novo. Perdão por esta carta extravagante. Não vou repetir isso. Tenho desde ontem L’bomme de désir.

 

            Lembrança e respeito, sabe: a você, tudo o que quiser.

 

Léon Le Prevost





42 O original da carta leva a data do 12 de junho. É manifestamente um erro. Na carta precedente (no18, de 30 de maio), o Sr. LP menciona a data do 18 de junho para uma missa celebrada em memória da falecida. Alude de novo a isso, na presente carta, usando o passado: “no dia 18, uma missa foi celebrada...”. Essa data do 18 de junho é confirmada por uma carta dirigida a V. Pavie pela Sra. Hugo: “Irei, Senhor, à missa no dia 18 de junho...” (V. Pavie, sa jeunesse...p. 124). Convém, portanto, datar esta carta 19, do mês de julho.



43 De setembro de 1823 até fevereiro de 1825, o Sr. LP ensinou no Collège Royal de Lisieux. (Positio, p. 26-27)



44 Casanova, (1725-1798), aventureiro italiano, célebre por seus Mémoires.



45 É freqüentando o salão literário de Montalembert que o Sr. LP tinha conhecido Frédéric Ozanam (1813-1853). Jovem estudante de direito de 20 anos, Ozanam acabava de fundar, no dia 23 de abril de 1833, com cinco de seus amigos, a Conferência de caridade, sob o impulso de Emmanuel Bailly e da Irmã Rosalie, filha da Caridade. No dia 4 de fevereiro de 1834, a Conferência tomará o nome de Conferência de São Vicente de Paulo. A única carta conhecida do Sr. LP a Ozanam tem a data do 11 de abril de 1838 (cf. infra, carta 75-1).



46 Desde a sua volta a Angers em 1832, Victor Pavie tinha fundado, segundo o modelo do círculo literário o “Cénacle”, animado por V. Hugo, seu próprio cenáculo. Desse cenáculo saiu La Gerbe, onde se publicarão cada ano a prose e os versos de jovens escritores em potência.



47 Publicada de 1831 a 1834, difundia as idéias de Lamennais. Era impressa na gráfica de Emmanuel Bailly.





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